sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Pobre Alphonsus !

 

D. Miosótis deixou que o tempo escorresse pela ampulheta sem se preocupar muito com questões mundanas. Mestra,  a escola e uma récua de meninos lhe preencheram os vazios da alma e, possivelmente, por conta do bulício interminável da criançada, deu-se por contente: já tinha filhos demais adotados ali, para pensar em produções próprias. E polinizadores para suas flores não lhe faltaram. O certo é que, quando deu por si, tinha-lhe caído a postura. E nem imaginou que , depois de aposentada, um dia lhe batesse a vontade de ter um rebento que ajudasse, em mutirão,  a carregar o fardo da solitude. Buscou uma parteira, numa cidade vizinha,  e adotou um daqueles menininhos ; aqueles gestados por mero acidente de trabalho e que , por pouco, não teriam brincado na roda gigante dos enjeitados. Miosótis rejuvenesceu, banhou-se de um novo ânimo, desempenhando aquela função que preenche a vida de toda mulher: a maternidade.

                                   Turíbio cresceu forte e robusto, livrou-se, como contorcionista,  de todos aqueles achaques comuns na infância. Com o passar do anos, porém, Miosótis começou a perceber algumas excentricidades no garoto. Tutu era danado demais, traquinas, ainda da época em que hiperativo se chamava de malino e  se curava malinação com peia e não com terapeuta. Tinha um pensamento lógico, também, que destoava do cartesiano. Uma vez, comeu todo o queijo que a mãe colocara na geladeira  e quando Miosótis abriu a porta do refrigerador, deu por falta dos dois quilos do provolone  e encontrou lá dentro seu gato, Floquinho, tiritando de frio. Turíbio tinha colocado o bichano lá, para dar a entender ter sido  ele o afanador. Na escola, também, o progresso era pequeno. Envolvia-se, frequentemente, em brigas com os colegas e o aprendizado era lento como jabuti  lombrado. Ninguém dizia a Miosótis, mas toda a cidade sabia que na caixola de Tutu existiam muitas polcas faltando, muitas arruelas frouxas  e  parafusos precisando de aperto.

                                   Na nona série, a professora Jubertina, D. Juju, no final do ano, fez uma simulação de uma eleição para prefeito. Vários candidatos concorriam , entre eles o nosso Turíbio Montalvão de Souza. Se dependesse do nome, o cabra já estaria eleito pela pomposidade do sobrenome. Uma das tarefas de campanha  consistia em escrever um discurso para ler num comício na escola, pontuando as propostas de governo da gestão de cada um dos candidatos. No dia, todo o alunado reunido no pátio do colégio, um por um dos concorrentes puseram-se a discursar, pedindo votos e explicitando suas propostas que , não tão diferentes dos postulantes verdadeiros, repetiam a cantilena da melhoria da Saúde, do combate ao desemprego, da otimização da Educação , da engrenagem lubrificada da Segurança Pública. Por último, D. Juju convocou Turíbio, que em pose teatral, com voz forte e tonitruante, dirigiu-se à sua plateia:

                                   --- Meus eleitores, sujeitos subordinados, corantes da célula,  na síntese do DNA ribossômico !  Dois com dois são quatro! Tudo é relativo e nem só pão vive o homem!  E é aí onde Geraldo Bastos diz que um pneu é um pneu. Não esquecendo que José de Alencar é um escritor romântico. O que é uma cidade? -- dirão vocês ! Como na pangeia: a coalização de coacervados projetando uma nova Godwana.  É que o quadrado da soma dos catetos, nem sempre se compara à hipotenusa elevada à potência 2.  Quem quiser saber pra onde foi o mucuim que a língua do caçote engoliu, pergunte à ceroula da beata Mocinha ! E quero terminar deixando essa reflexa para vocês:  Pobre Alphonsus, pobre Alphonsus !  

                                   Finalizado o discurso do candidato, sob aplausos gerais dos colegas, procedeu-se à eleição. Apurados os votos, Tutu foi eleito por ampla maioria. O professor Faustino, o diretor do educandário, enquanto abraçava o novo prefeito da Escola XV de Junho, comentou:

                                   --- Parabéns ! Isso não foi discurso de prefeito, não, seu Turíbio ! Isso é um discurso digno do Presidente da República Federativa do Brasil !

                                   E bateu continência.

 

Crato, 08/01/2020


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