sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Dináfrica

 


J. FLÁVIO VIEIRA

                               Do alto do Morro Suvaco do Urubu , entre casas espremidas umas contra as outras,  Susej , observava  o mundo, estrategicamente, da janelinha do barracão. Erigida a casinha  com papelões e plásticos  pelo pai ,um coletor de materiais recicláveis.  Susej era o  apelido carinhoso  do menino  Suetônio Ulisses Severiano Júnior, nascido com nome nobre e pomposo mas que ali fora deixado por uma cegonha que, certamente, estava com o GPS defeituoso. Desde pichototinho,  o guri percebeu, do seu observatório, as incongruências do mundo. O morro, até a sua metade, era coberto por mansões gigantescas, em feitio de palácios e castelos, e habitadas por bacanas, com carrões vistosos, heliportos e piscinas olímpicas. Quase não tinham filhos. Só se os viam, nos finais de semana, em que faziam festas suntuosas, reunindo outros ricos que dividiam bebidas esquisitas , comidas do mesmo teor e outros aditivos que eram aspirados em bandejas de prata. A parte superior do morro era tomada por casebres  mal enjambrados, alguns de madeira, outros de papelão e  outros tantos de taipa. Cada um deles acomodava várias gerações de viventes: pais, avós, filhos muitos, genros, noras.

                        Cedinho, os adultos saiam em busca da sobrevivência, lutando pelo almoço e pela janta, com vendas em sinais de trânsito, em pastoreio e lavagem  de carros, em trabalhos domésticos e subempregos informais. A trupe de filhos ia para a Escolinha de manhã e , na volta, ficava solta  pelo Morro, soltando pipa, brincando de esconde-esconde,  jogando bola. O Estado ali só aparecia em tempos de eleição ou com a chibata e o cassetete. Susej morava na encosta do Morro e, desde cedo, se deparou com a realidade dura e crua: metade do Morro esbanja, a outra metade passa fome. Aquilo, inclusive, já se tornara parte de uma estranha normalidade, como se o prato lhes fosse entregue pronto e feito, a mistura era aquela mesma, não se tinham que discutir a receita, o gosto,  nem o tempero.

Susej foi crescendo e, aos poucos, descobriu que havia alguma coisa de errado naquela cozinha. Conversou com o padre da capelinha do Morro, que vinha mensalmente celebrar a missa,  e ele tentou lhe convencer que era assim mesmo: esse mundo já tinha dono, mas no outro, o celestial,  tudo subverteria e quem foi mão,  neste planeta,  lá seria palmatória. Mas foi o professor da Escolinha que abriu seus olhos. Para ele, a história da humanidade vinha sendo escrita, desde o início dos tempos, pelos mesmos privilegiados: eles  tinham destinado o paraíso para uma pequena casta de escolhidos  e o inferno para os outros.      

 Susej começou a se reunir com os amigos, uns doze rapazotes da sua proximidade  e convenceu-os que o jogo  precisaria ser mudado.  Mas,  como ? Combinou para pesquisarem o que os ricaços consumiam mais e, aí, eles poderiam vender para eles, já que moravam tão próximo: apenas algumas escarpas de morro os separava. Os meninos , depois de alguns dias, retornaram com a informação. Havia, sim, alimentos chiques como frutos do mar, caviar, mas o que mais usavam era um pó branco, parecido com bicarbonato e que dava um barato muito caro. Susej, então, junto com a récua de doze amigos, resolveram entrar no negócio. Souberam de um colombiano, que morava numa outra favela próxima, e conversaram com ele, combinando detalhes. Antes , no entanto, Susej e toda sua corriola, fizeram um juramento:  jamais se envolveriam pessoalmente no uso, uma vez que empresa de urso tomando de conta de mel, está fadada naturalmente à falência. A quebra do juramento, de comum acordo, seria motivo para a eliminação física sumária.

                        A partir desse dia, a empresa do Suvaco do Urubu prosperou. Vendiam toneladas de pó para os ricaços do morro e , rápido , espalharam, numa espécie de holding,  para favelas vizinhas que tinham o mesmo tipo de Dináfrica ( na encosta,  Dinamarca e no topo,  África). Começaram um trabalho social no Suvaco, ajudando pessoas necessitadas com alimentos, material de construção,  remédios, compra de livros para seus filhos. Não demorou muito e a polícia começou a subir mais morro acima. Falava em combate ao tráfico e aos traficantes, mas , em geral, vinham para o achaque, para o suborno, para dividir “o bolão”. Susej compreendeu que, em nenhum momento, os policiais procuravam os consumidores estribados. Atacavam os aviões e esqueciam os aeroportos.

                        Um dia, Isca,  um dos doze do Morro, descobriu-se tinha se viciado e estava transtornado, cheirando como louco e sem repassar o apurado. Os demais se reuniram e, por unanimidade, julgaram-no, sapecando-lhe uma pena menos radical: a expulsão.  Isca, adicto, endoidou. Procurou a polícia e virou traíra. Entregou todo o jogo, a troco de algumas gramas de coca. Com a delação, Susej foi preso e julgado. No transporte para a prisão estadual, os policiais resolveram suborná-lo. Queriam dinheiro muito, a troco de sua liberdade. Susej aguentou firme e negou-se a entregar o resto da organização. Foi fuzilado a queima roupa, sob a justificativa legal que tentara fugir.

                        No Morro os rapazes se organizaram e continuam tocando a empresa, tendo como sócios policiais e, como fiéis consumidores, os ricões do momento. Susej agonizou sem imaginar que estava reescrevendo uma mesma história natalina que se repete, com diferentes nuances,  há mais de dois mil anos.

 

Crato, 24/12/2021  

                       

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O Natal de Héctor

 


O menino Hector mora em Arroio Grande,  no Rio Grande do Sul. Uma cidadezinha de pouco mais de vinte mil habitantes , fronteiriça com a Argentina. Ali nasceu, também,  o Barão de Mauá, um dos maiores industriais, armadores e banqueiros do Brasil do Período Imperial. Este finalzinho de ano,  o nosso Hector fez um pedido inusitado ao Papai Noel que parece uma clara logomarca dos tristes e sombrios tempos bolçais em que vivemos.  Um bilhetinho , escrito a lápis, em papel timbrado do seu caderno.

“Papai Noel,

Meu sonho é ganhar uma carne para

 passar com minha família.

Tenho 07 anos.

Muito Obrigado, Papai Noel.

Hector”

                        A mãe, Patrícia Braz, compartilhou o desejo do guri nas redes sociais. Ela sabe que estes são tempos em que se guarda carne em cofre de segurança. E, como dizia o nosso Padre Vieira, A carne não é fraca, , fraco é quem não come carne.   O piá  mora na casinha com os pais e mais três irmãos . Hector tomou esta rápida decisão ao ser informado que, no Natal, este ano, não teriam churrasco, uma calamidade pública em se tratando de famílias gaúchas. Com a pandemia da Covid e a epidemia bolsolóide, a família de Hector vinha passando por sérios apertos nos últimos anos. Com boletos atrasados, a mãe precisou utilizar a internet de uma comadre para colocar o bilhete de Hector em redes sociais. Para sua surpresa, choveram doações de alimentos e em dinheiro que ultrapassaram mais de oito mil reais. No final de ano, os corações parecem mais brandos e sensíveis. O Natal dos Braz promete ser um dos mais fartos dos últimos anos.

                        Irineu Evangelista, o Barão de Mauá e o nosso Hector são conterrâneos. Distâncias astronômicas os separam. Cronologicamente, dois séculos exatos se interpõem entre o nobre do império e o garotinho do bilhete. O nosso Mauá foi um pioneiros em várias áreas econômicas brasileiras: montou o primeiro estaleiro, a primeira fundição de ferro, a primeira ferrovia de Pindorama e criou o terceiro Banco do país. Tornou-se o primeiro grande industrial brasileiro. Hector, duzentos anos depois, vive o desalento de um país que diz-se do futuro, mas sempre perseguido e a cada dia mais inatingível. Junto com mais vinte milhões de habitantes,  o nosso pimpolho vive em insegurança alimentar. Sim, esse é o nome pomposo que agora inventaram para denominar aqueles que passam fome. Como dizia o nosso José Américo de Almeida: “Há uma miséria maior do que morrer de fome  no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã”.

                        Ficamos felizes e emocionados com a realização de Hector nestas festas do ciclo natalino. O menino lançou sua garrafinha com a mensagem num mar virtual  e conseguiu sensibilizar, com a pureza das suas cristalinas palavras, muitos corações mundo afora. Teve ainda a sorte de viver num estado do Sul que tem caixa de ressonância. No Norte e Nordeste, os gritos são sufocados e as lágrimas evaporam rapidamente sob o efeito do sol. E , mesmo assim, daqui um pouquinho, o induto de Natal passará e os sentimentos, novamente, se cobrirão de sua couraça magmática. Os boletos da família Braz continuarão a persegui-la sem trégua e os prazeres da carne terão que esperar, com sorte,  um outro Natal.

                        Para que Hector não precise passar a vida escrevendo outros bilhetes ao Papai Noel é preciso resolver a distância incomensurável que o separa do seu conterrâneo o Barão de Mauá. Por que duzentos anos depois, nada mudou e alguns continuam esbanjando o supérfluo e outros persistem em ter que pedir a Papai Noel pelo essencial ?

 

Crato, 17/12/2021

                          

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

O Sertão vai virar mar ?

 


             O professor José Mauro, de Belo Horizonte,  criou o Projeto Livro de Graça na Praça-LGP em 2000, ao visitar o Grupo Escolar José Bonifácio, onde fizera seu curso primário. Constatou, desolado, um total afastamento dos novos alunos da Língua e Literatura brasileiras. Pensou, então, em refazer a continuidade desta corrente, esfacelada em algum lugar da nossa história. O incentivo à leitura lhe pareceu o caminho mais propício e, num duro trabalho de arregimentar escritores e parceiros, em 2002 lançou, na Praça da Liberdade de Belo Horizonte, a seleta “Ouvindo Estrelas” ( 59 poesias de 31 autores) , distribuída em uma grande festa literária e, posteriormente, reeditada pelo MEC com mais de trinta mil exemplares. Desde então, somaram-se dezenove edições do Livro de Graça na Praça, em Belo Horizonte, com números que parecem estratosféricos: 450.000 exemplares doados (entre livros adultos e infanto-juvenis, cordéis, revistas),  atingindo um público de 1,3 milhões de leitores . 

                        O LGP envolveu incontáveis escritores das mais diversas regiões do Brasil, inclusive vinte e sete novos autores, escolhidos em Concurso de Contos realizado anualmente, e até mesmo escritores internacionais (Japão, EUA, Portugal). O benfazejo pólen do LGP, levado pelo vento, floresceu em muitos outros campos mundo afora: Uberaba, Manaus, Crato, Uberlândia, São Lourenço e Toronto no Canadá.

                        Aqui em Crato, em 2019, o Instituto Cultural do Cariri promoveu, na praça Siqueira Campos, o primeiro LGP com a distribuição de mais de dois mil livros, doados gentilmente por autores caririenses e também pelo Projeto LGP/MG e Instituto Fernando Sabino, de BH. Este ano, o Instituto Cultural do Cariri, com apoio irrestrito da Secult/Crato, e através da captação de recursos em Edital de Patrocínio da Lei Municipal de nº 3453/2018, está publicando seu próprio livro para o LGP, envolvendo em torno de 25 escritores do nosso sodalício e mais seis escolas estaduais de Ensino Médio, cujos estudantes participaram de concurso para escolha de textos para o LGP/Crato/2021, sobre lendas e mitos caririenses. O evento acontecerá nesse sábado a partir da 9:00 h , na Praça Siqueira Campos, numa grande festa literária, com saraus poéticos, apresentações musicais, retreta da Banda Municipal de Crato, contações de histórias, oficinas para fabricação de marcadores de livros. O público presente receberá, ainda, gratuitamente, o livro : “A Caverna encantada- Mitos e Lendas do Cariri”, editado, carinhosamente para o evento, com tiragem de mil exemplares, além de incontáveis outros livros doados por autores caririenses e cordéis, inclusive um produzido pela Academia de Cordelistas do Crato sobre este mesmo tema. O professor José Mauro, criador do Projeto, estará presente conosco na grande festança de fim de ano que obedecerá, religiosamente, todo o protocolo sanitário.

                        Em tempos em que todos os Códigos: ético, moral, de conduta e posturas parecem ter sido substituídos pelo Código de Barras, você deve se perguntar, a razão de tantos escritores estarem promovendo este projeto, se nadicas de nada receberão , financeiramente, de volta. Talvez a resposta seja que vivemos numa epidemia cujo remédio é vacina e isolamento. Por outro lado, convivemos com uma endemia que agora se tornou epidêmica: a do descaso, do abandono, do esquecimento, da desigualdade. Para esta, ao contrário da outra, a terapêutica é luta, aglomeração e a aplicação de dois medicamentos infalíveis: Cultura e Educação.    

                        O professor José Mauro da Costa tem a clara ciência de que os terríveis índices educacionais do país não são um mero acaso, mas resultam de projetos de governo, como um dia preconizou seu conterrâneo Darcy Ribeiro. Ele traz, junto conosco, um pequeno orvalho na esperança de que terá a força de apagar o vertiginoso incêndio que devasta a floresta. É que as tempestades, afinal, são feitas de pequeninas gotículas que se juntam nos Cumulus. Gota a gota, quem sabe, um dia o orvalho se transforme em chuva torrencial e o sertão, como previu o Conselheiro, pode de novo virar  mar.  

 

Outubro/2021


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Chico José do Crato

 

J. FLÁVIO VIEIRA

 


                                                                        Quando se descobriu que a informação era um

                                                                         negócio, a verdade deixou de ser importante.

                                                                                                             Rvszard Kapuscinsky

                                                              

                                                                        Um repórter está sempre preocupado

                                                                         com o amanhã. Nada há de tangível no ontem.

                                                                                                            Edward R. Murrow


                                               Uma notícia tomou de assalto o Cariri esta semana. O repórter cratense Chico José foi demitido da Rede Globo de Televisão. Os cratenses mostraram-se ressabiados com justas razões. Chico é uma lenda da reportagem de aventura no Brasil. Permaneceu na Globo por quase cinquenta anos e foi responsável por mais de cem reportagens no Globo Repórter. Varou os cinco continentes, mergulhou com tubarões, subiu montanhas e locais sagrados, viu-se diante de gorilas africanos hostis , dragões de Komodo, de elefantes marinhos na Patagônia, e onças ferozes  na Amazônia. Pulou até de Bungee Jump , numa aventura que faria tremer os adolescentes mais adrenalinizados. Chico esteve nos Polos Norte e Sul. Em outubro último,  gravou as belezas do Atol das Rocas. Destemido, em plena ditadura militar denunciou extermínio de indígenas , crime perpetrado oficialmente para possibilitar a abertura de estradas em áreas de reserva. Seu faro de repórter o fez acompanhar um sequestro em Recife, assumindo lugar de uma grávida sequestrada, colocando em risco premente a própria vida. Fez-se ainda repórter esportivo cobrindo seis Copas do Mundo e duas Olimpíadas. Apresentou, ainda,  o Globo Esporte em Pernambuco. Chico levou o Nordeste para todo o Brasil : mostrou com galhardia o Carnaval pernambucano, tornou populares nacionalmente as Festas Juninas  e denunciou a seca e a miséria que ainda perduram , como uma chaga , na nossa região, um genocídio que se arrasta por muitos anos e por muitos governos. Nosso repórter criou ainda uma série de reportagens sobre ações ambientais e preservacionistas no Nordeste, junto com a esposa, Beatriz Castro.   Em 2013 , Chico foi indicado a um Emmy Internacional por um Globo Repórter sobre a rotina e a ritualística dos índios amazônicos Enawenê-Nawê.

                                    Todas estas peculiaridades foram detalhadas pelo diretor da Globo Ali Kamel, numa carta distribuída para todos companheiros da empresa. Nas entrelinhas,  percebia-se a tristeza em ter que se despedir de Chico, percebendo que uma parte da Globo, naquele dia, também ia junto. É que há um Chico José bem maior que o repórter famoso e destemido: o homem que se esconde atrás do jornalista. Chico é de um caráter a toda prova. Deixou de ser correspondente internacional, fugindo de reiterados convites. Nunca quis sair do Nordeste. Chico, também, negou-se a mudar se sotaque, sabia, perfeitamente, que se adotasse outra língua já não teria identidade: seria um mero boneco de ventríloquo. E a grandeza não para aí, ele tem orgulho de sua origem, é um cratense declarado, bairrista irresistível. Seu prato preferido, depois de ter provado iguarias de todo o planeta,  pasmem vocês, continua sendo Baião de Dois com farofa e pequi. Na própria carta de despedida,  Ali Kamel o chama: “Chico José, cearense do Crato”. E Chico sabe, perfeitamente, que aqui é sua Pasárgada, aqui ele é amigo do Rei. Mexer com ele é risco de eclodir uma nova Confederação do Equador.

                                    Seus conterrâneos percebem que a coisa não deve andar muito bem na Vênus Platinada. A pindaíba é previsível.   Afinal, na hora do aperto, desvencilham-nos, primeiramente,  das joias, dos bens de maior valor.  E é justamente o que vem acontecendo com a Globo nos últimos anos, com seguidas e incontáveis demissões das figuras mais icônicas do seu plantel. Alguns comentam que estão despachando os mais idosos e, numa reengenharia, trazendo juventude para a empresa. Mas todos sabem, claramente,  que é justo o misto de fulgor juvenil com a experiência dos sêniores que traz a fortaleza de qualquer instituição. A Globo paga o preço de posicionamentos discutíveis e esdrúxulos , quando abandonou tantas vezes os campos da informação e adentrou na areia movediça da política, do partidarismo descarado e do golpismo desenfreado. O boleto acabou chegando para ser pago. Na liseira, as joias terminaram tendo que ir para as casas de penhora.

                                    O grande problema não é Chico José ter sido dispensado pela Globo. Ele poderia muito bem, nestas alturas, dependurar o microfone e levar a vida à beira mar no balanço da rede. Mas  o filho de seu Chico e D. Morena tem um frivião,  como se diz por aqui. Incontáveis oportunidades já apareceram, no Rádio, na TV, na Produção Audiovisual. Ele continuará nos brindando com suas proezas e reportagens. O grande problema, na realidade, é a Globo ter perdido Chico José.

 

Crato, 03/12/2021