sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Revelações

 


Sesé do Lambe-lambe foi um pioneiro em Matozinho. É certo que a  vila conhecera outros fotógrafos antes, mas eram ambulantes, destes que corriam de cidade em cidade, batiam seus retratos, em geral de famílias de posse, e saiam como mariposas em busca de outros lampiões. Sesé tivera o mesmo destino nômade de tantos outros, mas um dia enrabichou-se por Marinalda, uma morena reboculosa de Matozinho e terminou derrapando naquelas curvas e capotando, perigosamente, em seus relevos. Estabeleceu-se na cidade, com seu lambe-lambe, baixou os preços das fotos, dos monóculos e dos pires fotográficos, facilitou os pagamentos em módicas prestações, espantando a concorrência nômade e abarcando uma imensa freguesia nas classes mais arrombadas. Em pouco tempo, era quase impossível entrar em qualquer casa da vila e não se deparar, nas paredes, junto aos santos de devoção, com fotos das famílias estampadas em molduras rococós.

                                   Não havia festividade na vila em que Sesé lá não estivesse, estrategicamente estabelecido, com seu lambe-lambe  e o flash improvisado , de um lado, que soltava fogo como boca de dragão. A fotografia despertava a curiosidade dos matozenses com sua tessitura misteriosa, com o mergulho do fotógrafo na boca obscura da máquina,  seus manuseios em câmara escura, o relâmpago do flash, a magia da cópia em sépia que saltava aos olhos. Toda essa atividade meio mágica, que conseguia levar eternidade para momentos únicos e etéreos: tornando vivos, finados; fazendo presentes sorrisos perdidos agora no Sul; fixando momentos como batizados e casamentos, fizeram de Sesé uma figura extremamente querida e essencial em Matozinho. E olhe que nosso fotógrafo tinha um defeito difícil de engolir naquela terra que se dividia em metade de religiosos, metade de fanáticos. Sesé era um incréu de carteirinha: não acreditava em vida depois da morte, numa força superior, em céu, inferno, reencarnação. Dizia sempre que desconfiava muito deste mundo aqui em que vivia, se ele existia mesmo, quanto mais do outro que ninguém sabia nem onde era e os que iam para lá, ficavam bestas, calavam e não mandavam notícias. É que as coisas do outro mundo não se revelavam tão facilmente como as fotografias. Padre Arcelino olhava para ele meio de banda e uns crentes que tinham se estabelecido em Matozinho, mais recentemente, espalhavam que Sesé era meio bruxo e tinha pacto com satanás. O pastor Nicolino Apocalipse dissera em suas pregações que Sesé , com seu lambe-lambe, podia roubar a alma das pessoas. Isso depois que Sesé lhe perguntou, durante um dos seu cultos, uma questão de resposta complicada:

                                   --- Popó, por que quando você precisa de dinheiro pede para nós fiéis e quando a gente diz que está precisando, o senhor manda a gente pedir pra Deus ?

                                   Sesé tirava tudo de letra e não se intimidava. Dizia que tudo aquilo era lero-lero e que acima do telhado só quem mandava eram os gatos e os urubus. Suas histórias se multiplicavam na vila e se amplificavam, rapidamente, até porque Sesé era o único ateu convicto de Matozinho.

                                   Pe Arcelino tinha feito uma festa em homenagem a São José que envolveu a vila toda por nove dias. A região vivia um tsunami de secas que já se prolongava por cinco anos. Embora a padroeira fosse N.S. dos Desafogados, o pároco aproveitou aquele mês de março para uma homenagem ao pai de Cristo, na tentativa de sensibilizá-lo quanto a um bom inverno. Quermesses, leilões, parques infantis, novenas embalaram a cidade até o famoso dia 19, quando o equinócio, se já não tivesse derretido, deveria passar. No sermão final do novenário, Pe. Arcelino agradeceu aos fiéis: nunca uma festa religiosa em Matozinho tinha arrecadado tanto. Dias depois, Sesé estava com seu lambe-lambe montado na praça, quando passa uma beata, com uma imagem de São José, arrodeada de flores e suplica:

                                   --- Meus senhor, me dê uma esmolinha para São José !

                                   Sesé, então, quis saber mais detalhes:

                                   --- Minha senhora, me diga uma coisa, esse santo aí é aquele mesmo que Pe. Arcelino fez a festa e arrecadou um absurdo de dinheiro para ele ? Pra vê se o homem cuidava em mandar chuva?

                                   --- É ele mesmo, São José só tem um !

                                   --- Pois eu num dou não, viu ? Caba gastador da mulesta ! Ganhou aquela ruma de dinheiro e já tá em petição de miséria de novo ?  Parece rabicho de corda de ladeira abaixo !  Ele joga, joga, minha senhora ?

                                   Doutra feita, ainda em penosos tempos de seca prolongada, o governo estabeleceu uma frente de serviço, como emergência, nas proximidades de Bertioga, colada com Matozinho. Alistavam os matutos para fazerem açudes e cavarem cacimbas e ganharem um pouquinho para ajudar na sobrevivência. Uma outra beata abordou o incréu do Sesé, em meio ao seu trabalho , mergulhado no lambe-lambe, na revelação de fotografias. Trazia Uma imagem de São Sebastião, arrodeada de flores, em um dos braços.

                                   --- Ei, meu senhor ! Me dê uma esmolinha para São Sebastião !

                                   Sesé desentalou da câmara escura, observou a imagem do santo flechado e resolveu a questão:

                                   --- Tem não, minha senhora, tem não! Aliste ele na emergência, é melhor !

                                   Na semana santa, Sesé estava em casa, dando os últimos retoques no seu lambe-lambe, preparando-se para o propício sábado de aleluia. Do lado de fora, passou um sócio da Ordem do Santíssimo, com sua opa vermelha e gritou a todos pulmões:

                                   --- Ô de casa !

                                   Sesé esticou o pescoço, lá de dentro da sala e retornou:

                                   --- Pois , não ! Diga aí, mestre ! Tá tangendo boi, com essa bandeira vermelha ?

                                   --- Não !  Num tá me conhecendo, não ? Sou da ordem do Santíssimo ! Vim pedir uma esmolinha pro óleo do Santíssimo, agora na semana santa !

                                   Sesé, nem piscou :

                                   --- Tem não ! Tem dinheiro pra óleo não ! Diga a ele que asse na brasa mesmo !

 

Crato, 06/11/20

                                    

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