Cleudo despertou
na quarta, no meio da tarde, meio
Rimbaud, após a Temporada no Inferno. Na boca, o gosto indefectível do cabo do
guarda-chuva. Sons múltiplos , ébrios e dispersos ainda reverberavam-lhe nos tímpanos, como carrilhões à distância.
Odores os mais estranhos subiam-lhe pelas narinas como se enfrentassem as
íngremes ladeiras dos Quatro Cantos: o acre cheiro do xixi e o oleoso cetônico das frituras mesclavam-se com o gasturento pituim,
o álcool, a maresia dos baseados, raramente
contrabalançados pela fragrância saneadora da loló e do lança. No corpo ainda
estavam atavicamente marcadas, como uma tatuagem, as cicatrizes muitas dos dias
de folia; mas que agora, nas Cinzas, perspegavam-lhe uma incômoda sensação ,
como as marcas indeléveis de um crime
perpetrado. Zonzo, buscou o chuveiro como uma tentativa de ressureição mas,
também, como se apagasse as provas de um ilícito. A água, escorrendo corpo
abaixo, como uma massagem, aos poucos lhe foi trazendo flashes, ainda que confusos, do dia anterior.
Soltara-se ,
à deriva, pelas ladeiras de Olinda, já de manhãzinha. Uma Via Sacra pelas
bodegas do Guadalupe, pelo Bar do Reggae, pelo Cavalo Marinho de Diles. Depois
, sem nenhum amparo, seguiu pelo Amparo , atrás de Troças a esmo, sem GPS e sem brevê : “O
Ceroula”, o “Taqui Procês”, o “Segura o Cu”, o “Marim dos Caetés”, o “Eu Acho é
Pouco” , o “Elefante”. Saltitava de bloco em bloco, como borboleta em campo de
girassol. Lembrou que encontrou alguns amigos no percurso e acabou cultivando
outros tantos. O frevo corria solto com sua batida frenética e suas
circunvoluções em montanha russa. Na pista, o passo acrobático investia-se de
equilíbrio de colibri e piruetas de
malabares.
As imagens
pareciam-lhe mais nítidas e sequenciais até o finalzinho da tarde, a partir
daí, as recordações apareciam estroboscopicamente entrecortadas, sem conexões
claras. O porre certamente contribuíra para a amnésia, como também as talagadas
de loló e as “bolas” no “Maconhão”. Não conseguira decifrar o mistério da sua
volta à casa. Como retornara ? Que alma caridosa o ajudara ? De repente, como um clarão, abriu-se uma
clareira na sua mente. Viu-se no Alto da Sé agarrado com uma loura escultural,
aos beijos, envolto numa aula de nível superior de alfabetização em Braile. Um
nome, de repente, saltou-lhe na cabeça : Iris ! Via-se numa viagem astral, como
se do espaço observasse a repetição da cena, quando, nos amassos, tentava
derrubar o muro de um casarão de mais de cem anos. Depois , viu-se com Iris,
entre lençóis, numa casa pequena, de Olinda, dormindo de conchinha, ambos com
sorrisos pós-prandiais, fartos e
realizados. Estes foram os derradeiros quadros que conseguiu arrancar da
memória, como a cena final de um filme feliz : The End.
Pelo resto do
dia, Cleudo não conseguiu arrancar Iris dos pensamentos. Onde estaria agora? Ainda a
encontraria algum dia, para as cenas de próximos capítulos? Ligou para alguns
amigos mais próximos, mas ninguém deu notícia do acontecido. Não havia
testemunhas. Teria sido um sonho?
Na
quinta feira, começou o ano no Brasil. Os homens arrancaram as antigas máscaras
momescas e colocaram as outras do seu cotidiano. Cleudo voltou ao trabalho,
aposentando as serpentinas e os confetes. Aos poucos, Iris foi-se tornando etérea, evaporando-se junto com as
lembranças do Carnaval. Na semana seguinte, no entanto, a lavadeira trouxe-lhe
as roupas lavadas e engomadas. Junto devolveu algum dinheiro e papéis que ela havia
encontrado na bermuda olindense. Enquanto separava o joio do trigo, encontrou
um cartão de visitas lilás que lhe prendeu a atenção.
IRISMAR
M. ANJO
MASSOTERAPEUTA
Rua do Rosário , 320
Bom Sucesso - Olinda - PE
Fone- (81) 9989374022
Abriu
as janelas do rosto num sorriso. O destino parece trouxera de volta seu amor carnavalesco. Iris
voltava a ser uma realidade palpável, pensou consigo mesmo, enquanto degustava
o adjetivo mais que adequado. Pensou em ligar imediatamente, identificar-se,
marcar encontro e a sequência daquilo que pensara ser um filme, mas agora
descobria que se tornaria uma série. Olhou o cartão, novamente, com cuidado e
seu entusiasmo, de repente, enuviou-se.
O nome Irismar lhe pareceu meio dúbio: atirava para tudo quanto era de
lado. Havia , ainda, uma mescla do prenome da sua Iris com o sobrenome que parecia mais uma
premonição do que um substantivo próprio. Preferiu deixar que a Iris ,que viera
num sonho, esfumaçasse-se naquela típica fugacidade impressa em todas as coisas
do Reinado de Momo. Como se mordesse um caju e se deleitasse com o inefável
docinho escorrendo pelos cantos da boca, mesmo sabendo que ele podia ser apenas
o prenúncio do travo que lhe embotaria o
paladar no finalzinho do último ato.
Crato, 23/02/2018
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