sábado, 28 de novembro de 2015

Aparição em Serrinha dos Nicodemos

A crônica de Serrinha dos Nicodemos  , perpetuada de língua em língua, pelos mais velhos , cantava a pedra : A padroeira da cidade , desde que se entenderam de gente era N. S. dos Desamparados. A imagem, exposta na capelinha da vila, fora trazida , há mais de oitenta anos , por um padre espanhol , Pablo de Montieux, que ali chegara numa desobriga. A Virgem , desde então, velava pela pequena  e árida Serrinha, com sua roupa florida, seu cetro na mão direita e o menino de Jesus , com cara de sapeca, pendurado no braço esquerdo, ornado com uma linda roupinha dourada e de lantejoulas que contradiziam totalmente com sua origem humilde.  O sacerdote demorou apenas uma semana na vilazinha, mas simpático e muito solícito, terminou sendo o responsável pela epidemia de Pablinhos e Demontieus que começaram a aparecer na região, depois da sua partida. Não que o velho padre fosse o pai biológico de tantos rebentos, não tinha mais idade e nem palpite para tanto: os meninos saiam da pia batismal com esses nomes, como uma homenagem desprendida dos serrenses para com o condutor da santa querida àquela localidade.   N. S. dos Desamparados amparava a geração de avós e bisavós de Serrinha, as gerações mais novas  , no entanto, adoravam a mesma santa, mas a conheciam por um nome totalmente diverso, estranho e de origem etimológica difícil de se determinar : Nossa Senhora de Seforegreli !
                                               As versões sobre a origem de tão estrambótico nome variavam: alguns remetiam a uma cidade italiana  e a um outro missionário franciscano que passara na região muitos anos antes de De Montiuex, no início da colonização daquelas brenhas, em tempos de ciclo do couro. Os serrenses andaram pesquisando em arquivos de Matozinho, cidade vizinha,  livros velhos de batizados, degustados em parte por traças, não conseguiram desvendar o mistério. Os párocos de Serrinha, que se foram sucedendo, terminaram , também ,por adotar o nome popular da Santa. Não adiantaria lutar contra   anos e anos de tradição, de maneira que N. S. dos Desamparados terminou desamparada, ofuscada pela outra de Seforegreli.
                                               Alguns anos atrás, o pessoal do IBGE, em período de Censo, passou por Serrinha . Junto com a pesquisa dos dados municipais, andaram escavacando relatos históricas da formação da Vila. Detiveram-se, em dado momento, com a Santa padroeira e seu nome estrambótico. Anotaram as mais corriqueiras versões. Alguém, então, lembrou do mais idoso habitante de Serrinha : o velho Castriciano Solos do Mar. Ainda lépido e na ponta dos cascos nos seus 103 anos. Casara, inclusive, recentemente , pela quarta vez e , sem quaisquer aditivos químicos ou ajuda de universitários, era pai de menino ainda de cueiro. Os técnicos, orientados por funcionários da prefeitura, resolveram conversar com a testemunha ocular dos fatos ocorridos naquelas brenhas, nos últimos noventa anos. 
                                   Com dificuldade, em lombo de burro, chegaram no Sítio Bréa, distava umas duas léguas de beiço de Serrinha , já fronteira com Matozinho.  Castriciano os atendeu   com aquela solicitude própria do sertanejo.  Já no primeiro contato explicou o vigor que ainda o acompanhava :
--- Pão de milho, arroz, feijão de corda e bucho ! Isso é que dá sustança ao homem ! A desgraça do mundo foi galinha de granja e macarrão ! Antes dessa porcaria, num tinha baitola no mundo, não !
        Conversa vai, conversa vem, o pessoal do IBGE, então, entrou no varejo do assunto:
    --- O senhor pode explicar de onde vem o nome da padroeira da cidade, N.S. de Sefrolegreli ?

                         O velho, com um chapéu de massa atolado até as orelhas, meio tamborete de sampa, pôs-se nas pontas dos pés, tragou fortemente o cigarro escora-carroça que pendia do bico e contou uma história que não fazia parte dos anais oficiais da história de Serrinha.
                        A primeira padroeira da cidade , na verdade, seria N. S. dos Desamparados que chegou nas mãos do querido Pe De Montieux. Acontece que nos anos cinquenta, uma notícia abalou toda a região. Carmosina, uma menina que morava ali na Bréa, chegou , no Natal, esbaforida em casa contando uma história que tinha visto Nossa Senhora que lhe tinha aparecido, por trás de uma moita de mufumbo, na revência do açude do Calangro. Segundo Carmosina, que mantinha um ar de espanto e sobre naturalidade, a Santa chorara  muito, disse que estava preocupada com os destinos deste mundo eivado de pecado. N. Senhora  ainda afirmara que tinha revelações terríveis para contar  a Carmosina e agendou a volta dela por mais duas vezes: no Carnaval e no São João, quando, enfim,  revelaria as tenebrosas previsões. Sinésio da Bréa, o pai de Carmosina, procurou, imediatamente, o Pe. Ernestino Vilas Boas, então pároco de Serrinha. Revelou-lhe o acontecido. Ernestino tentou dissuadir-lhe : aquilo devia ser fantasia de adolescente , que diabos a Virgem viria fazer num fim de mundo daqueles ?
                                   A incredulidade de Ernestino, no entanto, não contaminou a população. Quando a notícia vazou , espalhou-se mais rápido que fogo em painço. Em tempos de seca de mais de três anos, o povo desesperado viu-se, enfim, diante de uma boia em meio à enxurrada. Num mês, a população de Serrinha triplicou. Começou a chegar romeiro de tudo quanto era canto e a se espremer nas terras próximas ao Açude do Calangro. Barracas cobertas de palha se foram levantando, palhoças para venda de mantimentos e bebidas. Vendedores de santinhos , de imagens , terços e rosários rapidamente montaram suas barraquinhas nas redondezas. Até as meninas da “Boite Chão de Estrelas” de Serrinha, vendo o afluxo crescente de pessoas naquele lugar, montaram um pequeno anexo ali : a  “Barraca Corisco Ariado” .  Mais uma vez, o sagrado e o profano ali se postavam como o anverso e o reverso da mesma medalha.
                                   Pe Ernestino, de início relutante e incrédulo, vendo o  crescimento desenfreado de romeiros, resolveu, embora discretamente, aderir ao fenômeno. Primeiro percebeu que não adiantava nadar contra o Tsunami, depois, mais pragmaticamente, sabia  que aquela multidão podia render em óbolos para a paróquia. Todo dia, por volta das nove da manhã, horário da aparição da santa,  Carmosina, toda vestida de branco,  puxava uma corrente de orações próximo à moita de mufumbo , seguida pela multidão que já ali se espremia. À noite, então, aquilo tudo virava uma festa, com a cachaça correndo solta, a sanfona roncando num arraial montado estrategicamente em uma das vielas mais escuras e o rela-bucho comendo solto até o amanhecer. Frequentemente corria uma mão de tapa em pé de ouvido e peixeira no vazio, efeitos colaterais frequentes desta mescla de álcool-música-dança.
                                   No início de fevereiro, aproximando-se a data da próxima aparição da Santa, as levas de romeiros quadruplicaram e com elas também as soluções e os problemas. Carmosina  passou a entrar em transe frequentemente, a aparecer mais tensa e com cara de outro mundo. Uns três dias antes da data prevista para a aparição , ela chamou o pai e explicou que havia um problema. N. Senhora aparecera em sonho para ela e tinha dito que havia cancelado a vinda, pois aquilo ali estava uma verdadeira Sodoma & Gomora, um antro de pecado e que não viria mais de jeito nenhum.  Sinésio, então, agitado com a reação dos romeiros frente a este novo problema, resolveu procurar o Pe. Ernestino e o pôr a par da complicação. O sacerdote, comendo pelas beiradas como quem come pirão quente, não quis meter o beiço no meio da tigela. Disse  a Sinésio que a promoção do evento era deles , que não tinha nada a ver com isso e quem havia parido Mateus o devia embalar.
                                   Sinésio, depois, da reza das nove horas, então, pediu a palavra e falou com a turba. Maquiavelicamente resolveu não dar a notícia ruim de uma vez só: temia um arranca-rabo. Informou, então, que N. Senhora tinha aparecido em sonho à Carmosina e avisado que não tinha mais condições de aparecer ali .
                                   --- Ela disse, meus amigos, que isso aqui tá uma verdadeira esculhambação, um verdadeiro  cabaré  e que num vem mais é de jeito nenhum ! Até o Capiroto , envergonhado, se recusaria a se meter num Cu-de-boi desses !
                                   De qualquer maneira, Sinésio disse que Carmosina ainda ia tentar negociar com Nossa Senhora, mas que o povo ao menos se comportasse. Quem sabe ela não aceita aparecer amanhã, conforme tinha combinado ?
                                   No dia seguinte, uma multidão gigantesca se apinhava, ao redor da sagrada moita de mufumbo. Às nove horas em ponto, com todos ajoelhados, uma Carmosina aflita começou a chorar desesperadamente ao redor da moita. Ela pressintia o quebra-quebra que aconteceria logo mais. Segundo o velho Castriciano que  já cinquentão botara uma taperazinha ali pra vender mendraca com caju, aquele foi o maior rapapé já acontecido por aquelas bandas.
                                   O velho Sinésio, trêmulo, aproximou-se de uma Carmosina encharcada de lágrimas e deu o diagnóstico final :
                                   --- Amigos, é uma pena, mas eu avisei ! Essa putaria aqui ia terminar dando nisso !  Vocês estavam mais desmantelados que corrida de siriema ! Carmosina pelejou mas Nossa Senhora botou foi a maior banca. Disse que não vem é de jeito nenhum !  
                                   E , então, antes do novo dilúvio, firmou a sentença final de que não apareceria mais nem que a vaca botasse os bofes, com uma frase que terminaria batizando definitivamente a Nossa Senhora de Sifrolegreli de Serrinha . Nossa Senhora teria sapecado :
                                   --- Vocês lá querem Nossa Senhora nada, seus pecadores !  Se eu for, eu grele !



Crato, 28/11/15

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Treva


”A nossa família são os que escolhem, de forma livre, estar ali,       conosco.  Os que não nos abandonam,  nem esquecem,                                                                               e que guardam  a distância do respeito pela
                                                                                             nossa liberdade.”
José Luiz Nunes

                                            




  Mês passado,  uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou o chamado Estatuto da Família ( com 17 votos a favor e cinco contra), numa seção conturbada onde não faltaram embates duros entre parlamentares. A aprovação do polêmico Estatuto teve o apoio rasgado da Bancada Evangélica da Câmara e foi facilitada por manobras regimentais desencadeadas pelo presidente Eduardo Cunha que transita nestas hostes pretensamente sagradas. A partir da Comissão, o Estatuto deve seguir para votação em plenário ( embora esse passo possa ser dispensável)  e depois, se aprovado,  será encaminhado ao Senado. Há um ponto crucial na Lei que se pretende aprovar: A definição de Família  como sendo a união entre Homem e Mulher, por meio de casamento ou união estável ou a comunidade formada por cada um dos pais junto com os filhos. Trocando em miúdos só existirá Família , se o Estatuto for aprovado, numa união heterossexual.  Ou no caso da falta de um dos cônjuges( por morte ou separação) ,  dos filhos junto com o pai ou a mãe.
                            É quase inacreditável se imaginar a possibilidade de uma Lei dessas em pleno Século XXI. Avós que cuidam afetuosamente  de netos ( e quantos existem, mundo afora nos dias de hoje!) não mais formarão uma família; homossexuais que adotam crianças enjeitadas por casais heterossexuais, não formam um núcleo familiar; tios e tias que pretendam adotar sobrinhos abandonados, se o fizerem, não estarão perfazendo uma família; um viúvo ou viúva, um padre ou uma freira  que pretendam, piedosamente,  adotar crianças, desistam! Vocês não têm esse direito legal ! Todas as crianças abandonadas por seus pais oficiais, perambulando pelas ruas ou jogadas no orfanato, estão forçosamente condenadas a viver assim, o Congresso Nacional está determinando ! Depois, claro, os meninos serão julgados e caçados na rua, não com pais lhes impondo limites, mas pelos Herodes atuais :  a polícia, o IML e o rabecão.
                            Jamais imaginei que  retrocederíamos numa máquina do tempo à era das trevas. Um Estado que se pretende modernamente laico se vê assaltado por uma Teocracia fundamentalista. Definida a Família, já temo pelos próximos passos. Os gays serão obrigados a buscar sua Cura nas igrejas pentecostais; as transfusões de sangue serão abolidas nos hospitais brasileiros; anticoncepcionais, camisinhas  terão          suas vendas proibidas; ateus serão levados à fogueira junto com os bruxos ( aqueles que pensam diferente das rígidas leis teocráticas); o casamento será novamente restrito aos heterossexuais e o divórcio expressamente cancelado;  o dízimo  passará a ser obrigatório e descontado em folha de todos os brasileiros.
                            Os maiores crimes da humanidade foram cometidos sempre quando uma ética particular , de um grupo específico, foi empurrada, goela abaixo, como lei universal. O Estado não pode estar a reboque de moralismo grupais de qualquer espécie. A Família é formada por pessoas que se consideram familiares, independentemente de laços de sangue, geográficos, sociais e temporais. A possibilidade de se ter uma Sociedade mais harmônica, mas pacífica e mais justa é justamente quando ampliamos os horizontes da Família e consideramos todas as espécies  dos reinos da natureza como  nossos irmãos.

                            Já que os Teocratas brasileiros desejam que voltemos às cavernas, aproveitem e , com o Eduardo Cunha, suprimam o artigo 7º.  Dos 10 Mandamentos, um verdadeiro absurdo ! Aquele que exige uma coisa impossível  : “Não Furtarás!”

23/10/15

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Roteiro lúbrico-licencioso dos logradouros cratenses


                                              Quem , por acaso, se detenha em fazer um catálogo dos  muitos logradouros de uma cidade há, certamente, que se deparar com múltiplos métodos de batismo. Por um lado, existe aquele  batistério oficial que vai , pouco a pouco, denominando as mais diversas localidades com nomes , a mor parte da vezes, totalmente apartados da história local. Quebram a doce tradição popular e sapecam epítetos homenageando os poderes político e econômico da cidade. Assim, aqui em Crato,  a Rua da Pedra Lavrada se transformou em Pedro II; a Rua das Laranjeiras em José Carvalho; a Rua Grande em João Pessoa; a Rua do Fogo em Senador Pompeu; a Rua das Flores em Dom Quintino; o Sítio Quebra em Vila São Francisco. Por outro lado, persiste um movimento de contra reforma, de base bem popular,  buscando, desesperadamente, manter as denominações tradicionais e, mais, tentando,  de forma organizada e brejeira,   alcunhar os novos bairros que vão, inevitavelmente, surgindo, impulsionados pelo progresso e aumento da população.  O “Sertãozinho”, as “Malvinas”, a “Vila Caveirinha”, a “Vila Guilherme”,  aqui em Crato , são exemplo de novos lugarejos batizados , mais recentemente, pela doce língua do nosso povo. Em pouco, certamente, a Câmara Municipal ( que se atém basicamente em dar títulos de cidadão e nome de ruas) no afã de puxar o saco de algum poderoso , lavrará leis  empurrando, goela abaixo, novas denominações ,  divorciadas , totalmente, da história local.

                                   Talvez, como uma reação normal, a estes abusos, o povo simples  cratense, untado da mais pura irreverência,  tenha, paralelamente, criado um “Roteiro Lúbrico –Licencioso dos Logradouros Cratenses”. No fundo,  ele percebe que, se desviando para o jocoso, o lascivo, o sensual, o codinome ganha alma e energia novas e dificulta, sensivelmente, a troca , a reclassificação. Convido meus leitores  junto comigo, a fazer, agora, um Tour por esse Crato mais erótico e libidinoso. Afivelem os cintos e as braguilhas !
                                   Comecemos a nossa viagem pela “Vila dos Priquitos”, já reclassificada, pelos locais de “Vila do Bom Nome” e bota bom nome, nisso! Fica o paraíso  logo acima da Caixa D´água e, por incrível que pareça, próxima a “Vila da Bunda Lavada” , a “Vila do Cu Aberto” e a do “Peito Vazando”.  Todas estas  têm uma vizinhança mais que adequada à lascívia : “A Vila do Pau em Pé” . Para controlar possíveis e previsíveis libações, estrategicamente, nas proximidades, foi que  se localizou, com muita propriedade:   “O Carrapato”. 
                                   Atrás do Colégio Diocesano, lembram os cratenses, existe o “Rabo da Gata”. Anos atrás, uma madama da cidade, foi perguntada, em Fortaleza onde morava. Querendo mostrar sua nobiliarquia caririense informou que residia num bangalô na Rua Nélson Alencar. Como o interlocutor não lembrasse bem onde era o local, pois saíra do Crato há muitos anos, ela, de peito inflado de silicone e empáfia, explicou :
                                   --- Moro logo ali,  numa mansão, embaixo do “Rabo da Gata” !

                                   Descendo  das Guaribas, pelo  “Campo Alegre”,   existe o “Pelado” que felizmente fica muito distante do “Cipó dos Tomás” que é lá perto da Ponta da Serra .  O “Cipó dos Tomás”, graças a Deus, fica também bem longe do “Fundão”  e também distante do “Pelado” , se fronteiriços poderiam trazer graves questões legais e morais.  
                                   Por outro lado, na saída de Crato, lembram os mais velhos, se situa “O Pau do Guarda” que, estrategicamente , logo abaixo, como era de se esperar,  se limita com “O Saquinho” .  Por incrível que possa parecer, logo atrás do “Pau do Guarda” tem a Rua Ana Triste, o que fez, um dos nossos filósofos cotidianos a estranhar tal vizinhança e o sobrenome sorumbático da nossa Ana. Com todo respeito ao nosso Tristão Gonçalves, o nosso herói confederado,  o filósofo concluiu pensativo :

                                   --- Logo perto do “Pau do Guarda”? Ora ! Essa Ana só é triste porque quer...

Crato, 17/08/15
                                    

  

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Fogo-fátuo

Elpídio , depois de tanto desprezo, resolveu abandonar de vez a Expocrato. É que nos últimos anos foi se sentindo, pouco a pouco, relegado a um terceiro plano. Percebeu-se, por fim, como uma mosca dentro do Centro Cirúrgico.  Certo que nunca fora chegado à Pecuária e aos mistérios da Agricultura, encantava-se, no entanto, com aquela muvuca de sempre: a possibilidade de encontrar velhos amigos, a música , o filhóis , o paraíso que ali carrega  o nome enganoso de Inferninho, a paquera . Sem falar no Whisky que o transformava, facilmente, numa mistura de Leonardo de Caprio e Bill Gates.  De repente, teve a sensação de que chegara em Marte. Música ruim, cerveja quente e cara , estacionamento a preço de Avenida Paulista. Os próprios companheiros dos velhos tempos começaram a rarear, tangidos, possivelmente, pelos mesmos fantasmas que agora o atormentavam. As pretensas e prováveis paqueras já não tinham idade para aguentar Wesley Safadão  gritando no ouvido , ou sertanejos se derramando em lágrimas . E as  novas gerações estavam numa outra dimensão, não se interessariam , nunca, por um goiabão da sua marca, sexy ( mas aquele tipo de Sexy à Genário)  com cheiro de Brilhantina Glostora e perfume da Avon.  Não tinha mais o que fazer na Expocrato.
                                   Este ano, no entanto, uma novidade balançou suas estruturas. Soube da vinda do “Rei – Roberto Carlos”.  Voltaram, como por encanto, as longas costeletas à Elvis, a calça Boca-de-Sino, o medalhão no pescoço e o cabelo  black-power. Roberto escrevera a trilha sonora da sua juventude, cada música o transportava, imediatamente, para uma sensação única : o cheiro de jasmim  da menina de pastinha, a lombra do primeiro baseado, o gosto do beijo roubado no portão...  Além de tudo, com certeza, toda aquela geração estaria reunida no show do “Rei”.
                                   Elpídio quebrou, então, a jura que fizera dois anos atrás: “Nunca mais pisarei  na porcaria dessa Exposição!” . Comprou, ainda relutante, o Ingresso Ouro e se preparou, ansiosamente,  para  os “Detalhes tão pequenos”. E foram muitas e muitas “Emoções”... Música a música foi como se projetassem , caleidoscopicamente, fragmentos da sua vida. A plateia , educada e atenta, compunha-se de  incontáveis companheiros dos velhos tempos. Todos ávidos em apreender, junto a cada canção, estilhaços felizes da existência que se foram partindo ao longo do caminho. Elpídio percebeu em todos a mesma dupla sensação: a hipnose com  o brilho baço de momentos e sentimentos afogados  em meio às cinzas e a angústia disfarçada de não mais ser possível refazer o cristal que se esfacelou. Era como se todos estivessem ofuscados com o brilho de uma chama , sem perceber que era um  mero  fogo fátuo.
                                   Elpídio , então,  voltou o corpo para a outra extremidade da estrada. Parecia escura e tenebrosa, mas era sua única possibilidade de seguir em frente. Poderia permanecer postado em meio ao caminho apenas contemplando , saudoso, o fogo fátuo: mero esboço da ardente fogueira  de outrora. Despiu-se, calmamente, jogou longe os chinelos e partiu nu , na vereda desconhecida ,  aproveitando a fosca luz que vinha de trás,  pra não sei onde, pra até quando, pra quem sabe um dia...   


Crato, 06/08/15

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Num entendo... num entendo...

Dinda Bilé foi levado pela família ao psiquiatra esta semana. Contumaz hóspede do Hospital Santa Tereza , ele tivera alta há menos uns quinze dias. Com lua nova, Dinda costumava tresvariar , botava pra conversar “arizias” e respondia a vozes que só ele ouvia. Saíra do nosocômio bem melhorado, com discurso linheiro que só prumo de pedreiro. Depois da Expocrato, no entanto,  passou a palestrar, em solilóquio,  num idioma  esdrúxulo e pouco incompreensível, repetindo, de quando em vez, o mesmo bordão:
                        --- Num entendo, num entendo...
                        Os familiares de Dinda, já acostumados com seus surtos, embora esse parecesse bem diferente, resolveram encaminhá-lo  de volta  ao psiquiatra, temendo uma crise mais grave. Bem mais tranquilo que das outras vezes, Bilé deixou-se levar ao consultório do nosso Freud tupiniquim. Cabelo meio arrepiado como se pressentisse alma penada, olhos inquisidores e vagos, perambulando de um lado para outro como se esperasse um disco voador. Sentou-se na poltrona , defronte ao médico, fitou-o meio desolado e sussurrou:
                        ---- Não entendo, não entendo...
                        Dr. Godofredo  Veronaldo já o conhecia de outros aluamentos. Tinha conversado um pouco com a família, lá fora, sobre os novos sintomas de Bilé. Achou esquisita a postura mais calma do paciente, das outras vezes viera em crise maníaca e com muita agitação e surtos de agressividade. Aproximou-se de Dinda e quis saber o que ele não entendia:
                        --- Dinda, tudo bem ? O que é que você tá com dificuldade de entender, rapaz ?
                        --- A Expocrato ,doutor... Todo ano é  a mesma coisa... depois que acaba, aumentam as moscas e diminuem as moças... Não entendo, não entendo...
                        Dr. Veronaldo sorriu ante a apreciação do lunático e cutucou mais o velho Dinda. Que mais parecia tão incompreensível?
                        --- E a rua num é pública, doutor ? Eu pensava que eu também era proprietário dela. Pois , na Expocrato, apareceram os donos . Parece que entraram com usucapião. Estavam cobrando vinte reais o estacionamento naquela rua que eu pensava que  era nossa. Num entendo... num entendo...
                        O psiquiatra começou a gostar da conversa meio sussurrante de Dinda e tentou decifrar seus outros enigmas.
                        --- Num entendo, num entendo... A Expocrato é pública feita com dinheiro privado ou é privada  e feita com dinheiro público ? Pronde vão as sobras ? Num entendo... num entendo...
                        --- Na Expocrato os burros são os que ficam nas baias ou aqueles que pagam ingressos caríssimos para assistir aos shows de péssima qualidade ? Num entendo, não entendo...
                        --- Estudante foi espancado e roubado num show da Expocrato pelos seguranças . Quem roubava e batia antigamente  num era o bandido?  E agora é o segurança  ? Socorro, chame o ladrão !  Num entendo, num entendo...
                        --- Fui assaltado  três vezes na Expocrato em um só dia, continuou Dinda. Me roubaram trinta reais no estacionamento, depois na barraca me afanaram mais dez reais quando pedi uma cerveja e um garçon me surrupiou cem reais quando inventei de pedir uma carne de sol numa telha. Pensei que era telha de amianto ! Devo fazer um BO, seu doutor ? Num entendo... Num entendo...
                        Dr. Godofredo, surpreso, parabenizou Dinda:
                        --- Rapaz, você tá melhor do que nós !  E tu num dizia que era doido  , Bilé !?
                        --- Doido eu sou, Dr. Godofredo, agora eu num sou é burro, viu ?
                        Dr.  Godofredo  chamou a família e deu o diagnóstico. Ficassem tranquilos:
                        --- O homem tá com mais juízo que nós todos juntos !  Os doidos, amigos, tão tudo solto na rua , organizando eventos, participando das administrações e se passando por sadios. O mundo tá todo às avessas: os lunáticos soltos  e os  equilibrados internos aqui neste hospital ! Por que ? Num entendo, num entendo...

Crato, 23/07/15

                        

quinta-feira, 16 de julho de 2015

O Voo Oblíquo de Marilu

O retorno de Marilu , algo inesperado, causou um reboliço danado no Sítio Bréa. Tinha sido uma das primeiras moças a sair dali,  para trabalhar na cidade grande. Ainda adolescente, meio rebelde, andou brigando com a família, por conta de uns namoros fora dos padrões breenses  e, aumentando o conflito, preferiu , de comum acordo com os pais, partir para um voo solo em Matozinho. Marilu tinha lá seus dezoito aninhos e carregava consigo aqueles arroubos típicos da idade. Bonitinha, atirada, arranjou um emprego de doméstica na casa do Coronel Anfrízio Arnaud. Trabalharia durante o dia e , à noite, estudaria no Colégio Municipal Pedro Cangati.  Mais de três anos já se tinham escorrido,  quando a notícia da volta da filha pródiga espalhou-se pela Bréa. As colegas de Marilu se alvoroçaram. Tinham-na como um ídolo e aquele regresso imprevisto trazia junto uma fatia de desilusão. Mundo aberto à frente, todas as amigas carregavam consigo a possibilidade de um dia plainarem  igual a Marilu. O aparente fracasso dela, assim, esparramava uma certa frustração na alma de todas. O que teria acontecido ? Seria o mundo lá fora tão inóspito ?
                                   Na primeira oportunidade, procuraram Marilu. Queriam matar a curiosidade e, também, saber as novidades da cidade grande que só recebiam pelo Rádio. Muitas sonhavam em varar o mundo, seus sonhos dourados de adolescente não cabiam nas fronteiras opressivas daqueles cafundós.  O aparente fracasso da desbravadora , de alguma maneira, as angustiava . O que tinha dado errado na travessia de Marilu ?  Conversa vai, conversa vem, após quebrar-se o gelo que a ausência terminou por acumular, a entrevista transformou-se num papo de comadres, como nos velhos tempos.
                                   A desbravadora contou detalhadamente a vida em Matozinho. Havia um visível deslumbramento em cada detalhe que ia explanando. Guardadas as devidas proporções, para quem o universo se resumia à Bréa,  Matozinho investia-se de ares de metrópole. Marilu contou que trabalhava duro durante o dia, ia à Escola à noite e voltava ali por volta das dez horas. Nos fins de semana ia à missa e frequentava a praça da matriz. Algumas vezes foi a alguns sambas numa palhoça que foi inaugurada perto do açude do Sabugo. Fez amizades com algumas colegas de classe, já desarnadas e metidas na vida boêmia. Através delas,  tomou conhecimento de uma Buate de nome Arupemba , recém inaugurada. Lá se tocava uma musicazinha mais antiga, à media luz. A clientela masculina era basicamente de goiabões que dançavam animadamente com as meninas e pagavam tudo. Marilu, então, começou a fugir de casa, depois que os patrões pegavam no sono e voltava de manhãzinha, antes que Anfrízio metesse dos pés e pedisse o café. Tudo ia bem, até que um belo dia o patrão teve uma crise de asma à noite, procuraram , de urgência, a funcionária pra fazer um chá de camomila e cadê? Lugar mais limpo ! Descoberta a mutreta, Marilu teria sido peremptoriamente demitida.
                                   Transcrevemos aqui um pequeno fragmento da entrevista daquele dia fatídico que marcou o retorno de Marilu após a expulsão do Paraíso.
                                   --- Marilu, Matozinho é muito grande ?
                                   --- Marr menino !  Aquilo é um despautério, dá uma trinta Bréa encangada uma na outra...
                                   ---  Por que diabo é que te expulsaram da Casa do Coronel ?
                                   --- Eu tava fugindo de noite pra ir  me divertir na Boite Arupemba!
                                   --- Buate ? Que diabo é Buate , Marilu ?
                                   --- É assim como um Cabaré, mas  metido a besta. A gente dança com um monte de velho estribado. Eles pagam tudo ! Mas é lugar de respeito, nada de escandelo por lá !
                                   ---  E depois ? Nada de putaria ?
                                   --- Depois a gente ia com os velho prum tal de Moté.
                                   --- Moté ? Que bicho é esse, Marilu ?
                                   --- É assim um albiente que tem umas cama redonda, uma luz vermelha...  
                                   --- E o que vocês iam fazer lá com os velho ?
                                   --- Chegando lá, eles tiravam a roupa e nós também. E ficava ali naquele esfrega , esfrega... Depois eles até davam um dinheirinho pra gente ...
                                   ---- Esfrega, esfrega ? Nada  de vuco-vuco ?
                                   --- Não, os velhos eram muito respeitadores. Eles só pediam pra gente fazer capitão no pênis deles ...
                                   --- Pênis, Marilu ? Pênis ? Que bicho dos seiscentos é esse  ?
                                   --- Acho que pênis é o apelido do cacete de velho. É  igualzinho a uma rola, só que é mole, mole...


Crato, 16/07/13

quinta-feira, 2 de julho de 2015

O Prisma





                                             Na Sexta-feira última, a Suprema Corte dos Estados Unidos legalizou o Casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na prática, os cinquenta estados federados , agora, não mais poderão se negar a consolidar uniões com base apenas na heterossexualidade. A questão do Matrimônio Gay se arrastava há muitos e muitos anos. Desde 1996, havia Lei Federal, emitida pelo então presidente Bill Clinton,  que proibia  esse tipo de união. A partir daí, no entanto, vários estados americanos foram, pouco a pouco , com base em suas Constituições Estaduais, quebrando o veto da Lei de Clinton e emitindo licenças para casamento. Quando da votação histórica , já trinta e seis estados tinham avançado neste sentido, restando apenas quatorze que ainda se mantinham  irredutíveis. Na última sexta feira, por fim, os juízes da Suprema Corte tiveram que decidir se os Estados americanos tinham ou não a obrigação constitucional de emitir as licenças de casamento para casais do mesmo sexo e, mais, reconhecer as uniões feitas nos outros estados da federação. Finalmente, depois de uma longa queda de braços, a bandeira multicolorida terminou hasteada festivamente nos mais recônditos locais dos EUA. A decisão da Suprema Corte, é bom que se entenda, não só permite um ato simbólico de casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas estende os benefícios sociais e pensões públicas aos parceiros dessas uniões.
 
                                   A decisão do último fim de semana já nem parece tão polêmica aqui no Brasil. Nos últimos anos, a questão, entre nós, já parece totalmente sobrepujada. Nossos tribunais já têm clara orientação de proceder aos enlaces independentemente de sexo. Aos poucos , como é de se esperar, as solenidades vão ficando perfeitamente naturais. Quem hoje ainda lembra da polêmica questão do Divórcio, que acalentou fervorosas discussões no Brasil nos Anos 70 ? Hoje é um ato tão simples e corriqueiro como o matrimônio. A Libertação dos Escravos movimentou toda a Sociedade Brasileira no final do Século XIX em times a favor e contra. Hoje tentamos, todos, nos esquecer daquela violência institucionalizada. Como sempre, as Lei vêm sempre a reboque do curso natural dos comportamentos e costumes.
                                   Talvez o mais chocante na decisão da Suprema Corte  more na constatação de  como um país de primeiro mundo como os EUA, a mais importante Economia do planeta, tenha demorado tanto para tomar uma decisão tão importante e libertária. Como um país tão avançado e aparentemente liberal nos seus costumes permaneceu cego durante tanto tempo ? Como fechar os olhos para a realidade cristalina à nossa frente? A família deixou de ser aquele idílico núcleo de pai-mãe-filhos. Hoje as possibilidades são infinitas : mãe-mãe-filhos, pai-pai-filhos, avó-avó-filhos-netos, mãe-sozinha, pai-sozinho, mãe-doador de sêmen-filhos, pai-mãe-barriga de aluguel-filhos, doador de sêmen-barriga de aluguel-filhos-pai adotivo ... Como compreender, assim, que um casal de gays,  vivendo muitos e muitos anos juntos, construindo todo um patrimônio a quatro mãos, com a simples separação do casal, uma parte seja totalmente prejudicada, sem qualquer intervenção possível do Estado ? E em caso de morte de um dos cônjuges,  onde estará a justiça para fazer o viúvo/viúva herdeiro, com direito à pensão do seu parceiro ? Qualquer um dia nós pode carregar sua carga de preconceitos, suas pessoais interpretações religiosas, mas o Estado deve ser um juiz totalmente imune a quaisquer tipos de preconceitos e, mais que tudo, laico.
                                   O utilitarista Stuart Mill dizia, com propriedade, que apenas uma coisa justificaria a criação de uma Lei: impedir que minha liberdade fira a liberdade dos outros. A justiça , assim, não tem jurisdição sobre o  banheiro, a alcova, os hábitos de vida, os desejos de qualquer cidadão desse planeta. A ninguém deve interessa o caminho que qualquer um tome, com quem cruze na sua viagem, desde que não se atropele ninguém no percurso  : cada um de nós determina o sentido e a direção da própria vida. O Estado deve apenas estar, a todo instante, do nosso lado,  nos amparando  e auxiliando  no itinerário. Em tempos de tamanha violência, de tanto individualismo, que o Amor floresça como rosa, como lírio, como cacto !
                                   De qualquer maneira, a sentença da Suprema Corte  traz consigo um simbolismo  imperecível.  Os grilhões do conservadorismo terminam sempre quebrados pela gazua da modernidade. Desde sexta-feira última, o mundo ficou mais respirável. Ante a luz ofuscante do passado opressivo insinuou-se o prisma do novo e refez-se o milagre da refração com o Arco-Íris pintando o mundo de esperança.


Crato, 02/07/15

sexta-feira, 26 de junho de 2015

A Columbia explode na Rua do Amparo

Golvino Cetrônio acreditou, piamente, nos pés do padre, que aquela cláusula de Eternidade , escrita sorrateiramente no seu contrato nupcial, era perfeitamente factível.  O carrinho de rolimã do seu desejo havia derrapado nas curvas sinuosas de Abertiza, uma morena com trinta palmos de frente e uns noventa de fundo. Os amigos todos até lhe alertaram que aquilo era terra demais para seu caminhãozinho, mas Golvino fincou pé:
                                   --- Mulher e prejuízo só servem  grandes ! Se não der pra carregar a terra toda de uma vez, levo nem que seja em trinta viagens !
                                   O certo é que Cetrônio aceitou a empreita, até mesmo porque descobriu,  ali junto do altar, que tinha até à morte para transportar aquela montanha de terra que o destino acabava de lhe ofertar.  O caminhãozinho três quartos de Golvino aguentou firme o transporte por mais de trinta anos. Depois disso, começou a ficar ronceiro, a saltar de marcha, a encharcar , até bater o pino. Descobriu, então,  que seria impossível cumprir o trato. Abertiza que já era enorme , dobrou de volume e, a montanha que recebera um dia para carreto, se transformara num Everest. Resolveu dissolver o combinemos  feito um dia no pé do vigário, as cláusulas tinham se transformado em clausuras. Pensou que desfazer o acordo seria tão fácil como assinar aquele livro grande do Cartório . Qual nada!  Só então percebeu a necessidade de tantas testemunhas. Teve que vender os teréns e pagar a indenização a D. Abertiza.
                                   Golvino, apesar de depenado, imaginou que fizera um bom negócio. Saíra mais leve no bolso, mas também na alma.  Beirava os cinquenta, aquela idade em que já não existem mais tantos cartuchos na cartucheira  e muitas das balas restantes ainda  são de festim. Sem freio de mão, o caminhãozinho de Cedrônio saiu dispinguelado, ladeira abaixo. Atropelou boa parte das amigas de Abertiza, as colegas de trabalho da “Sapataria Pé Lustroso”  e as clientes mais atiradas. Construiu , pouco a pouco, um harém particular. Com o passar do tempo, no entanto, começou a enfastiar de tanta liberdade. Os relacionamentos, todos superficiais, de lingeries nas cadeiras e não no guarda-roupas,  já não preenchiam  o vazio da sua alma. Todo mundo precisa de alguém com quem possa contar além da cama redonda do Motel.
                                   Eis que Golvino percebeu que o caminhãozinho andava em círculos e tornara ao mesmo ponto onde um dia começara. Precisava de alguém para dividir as angústias e os prazeres, até porque, a balança, com a idade, tendia a pesar mais no primeiro prato.  A retomada da Bastilha não parecia tarefa fácil. Lembrou do velório do casamento anterior e sentiu calafrios. Ia começar tudo de novo ? Como suportar a putrefação do relacionamento e suas incontáveis exumações ? Além de tudo, como encontrar a noiva ideal ? As da sua geração estavam fora de prazo de validade e as mocinhas traziam seu frescor,  mas junto viriam as Bandas de Forró, os Cantores Sertanejos, as Baladas, as Paredões. Além de tudo,  tinha a quase impossibilidade de degustar sozinho o banquete e aquele risco  de  ficar a testa  como casca de jaca.
                                   Pensou, então, nas namoradas antigas, aqueles que vieram antes do casamento. Nunca, na vida, a paixão arde com aquele furor da adolescência. Talvez porque o tanque de combustível esteja cheio, pela tampa. Ademais, aqueles namoros , em geral, ficaram pelo caminho, longe das vias de fato, deixando um gostinho de quero-mais inalcançável. E foi aí que, um dia, posou-lhe na consciência, como um pássaro, a imagem de Sinharinha. Linda, meiga, delicada, tinha sido uma das suas paixões de Colégio. Tímido, se acercara, tentara , por diversas vezes, um namoro, um romance, sem qualquer sucesso. Depois, a vida os afastara. Soube que havia casado com um comerciante importante do Recife e para lá se mudara. Nunca mais seus caminhos se haviam cruzado. Comentou um dia com os amigos a doce lembrança e eles  falaram de um artifício modernoso : as Redes Sociais.  Precisou da ajuda dos universitários para adentrar na nova tecnologia. Analfabeto digital , diante de teclas e botões, parece mosca em Centro Cirúrgico.  Caqueando PC´s e Facebook, deu com o perfil de Sinharinha.   Lá estava diante de uma foto antiga, com aquele mesmo fascínio que um dia o tocara. Dizia-se novamente solteira e viu algumas fotos de dois filhos, já taludos e seguindo voo próprio. Golvino fez também uma página e encimou-a com uma foto dos tempos de colégio. Armada a arapuca, a partir daí,  fez contato e terminaram em conversas longas  in box.  Soube que se separara do comerciante há uns cinco anos e que, há pouco, se aposentara como professora do estado. As conversas foram se tornando quase que diárias e evoluíram para telefonemas. Por fim, Golvino combinou para se encontrarem em Recife, no Carnaval.
                                   Chegou na Veneza Brasileira,  no sábado de Zé Pereira, em meio ao frevo solto pelas ruas .  Acertara o encontro defronte à Bodega do Velho,  em Olinda, à tarde, na Rua do Amparo. Para facilitar a identificação Sinharinha prometeu ir de Colombina e  Golvino, já no clima,  disse, pedindo licença a Noel,  se fantasiaria de Pierrô  Apaixonado. Cetrônio nem conseguiu pregar os olhos pela ansiedade. Na hora de vestir a roupa, no entanto, apareceu um primeiro probleminha. Levara uma fantasia de muitos anos atrás e, simplesmente, não entrou naquele corpo antes de bengala e hoje tendendo  mais a barril. Chateou-se um pouco, mas , com ajuda de um primo, resolveu o impasse. Emprestaram-lhe uma longa e psicodélica  cabeleira  de Caboclo de Lança . Completou o adereço com a indefectível rosa nos lábios e os óculos escuros. Chegando lá , imaginou, daria alguma desculpa  esfarrapada e, certamente, a simples troca do figurino não atrapalharia o script.
                                   Partiu para Olinda com o coração saltando mais que o ônibus nos seus solavancos. Subiu a Ladeira da Boa Hora,  seguiu  a Rua do Amparo e, ao se aproximar da Bodega do Velho, já  percebeu, ao longe, a sua Colombina. À medida que a distância diminuía, no entanto, um sobressalto lhe foi invadindo o espírito. Aquela era Sinharinha ? Balofa, bochechuda, cabelos grisalhos, no rosto não pés-de-galinha, mas todo o galinheiro?  Que acontecera com a menina que um dia conhecera ? Caíra de um avião? Sobrevivera a Colombina à explosão da Columbia ? Por sua vez, Sinharinha, algo enfastiada, vendo a passagem do Caboclo de Lança, pensou consigo:
                                   --- Meu Deus ! Será que Golvino não chega ! Anda aparecendo cada assombração nessa Rua do Amparo ! Isso não é um Caboclo de Lança, mas um Caboclo de Pança ! Xô Satanás !
                                   Golvino ainda pensou em  se identificar. De repente , gelou ! O que ela vai pensar de mim ? Vai ter a mesma decepção ? Era melhor ficar a lembrança  dos tempos passados, pensou nosso Pierrô , agora  mais decepcionado que apaixonado. Que fiquem o Golvino e a Sinharinha do perfil da Rede Social !  Preferiu seguir em frente, como um filho que resolve não comparecer ao velório do pai, para manter na memória um retrato vívido e fulgente , ao invés da máscara mortuária.


Crato, 26/06/15 

sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Profeta Apoquetílico

                                            

   Robledo Ipueira terminou eleito, em Matozinho, com uma votação recorde. O poder político até então se alternava entre dois grupos acirradamente inimigos : Os Cangatis e os Carrapatos. De início, ninguém imaginou que a regra pudesse ser um dia estilhaçada. Robledo nem matozense era. Chegara por ali há pouco mais de dez anos e se meteu no ramo de mandioca, produzindo farinha, goma e beiju. Os negócios prosperaram , impulsionados por seguidos anos de invernos fartos. De conversa fácil e traquejo no ofício, Ipueira construiu muitos amigos. Toda Matozinho, no entanto, olhou com ceticismo sua candidatura a prefeito da cidade. Parecia fadada congenitamente ao fracasso. Depois de tantos e tantos anos de alternância dos mesmo lobos guarás de sempre, no entanto, os desgastes se vão tornando insuportáveis. A candidatura de Robledo apareceu, assim, como uma novidade tanto que, rapidamente , os Cangatis e Carrapatos se uniram pela primeira vez na história e apresentaram uma chapa concorrente a Ipueira, tendo como candidato Ronivaldo Cangati e , como vice, Garibaldo Carrapato. Se vencedores, claro, rapidamente brigariam, mas o intuito era tirar a possibilidade de um terceiro vir a dividir o bolo político.
                                   Teria sido, uns cinco  antes do período eleitoral,  que por ali aportou um beato de  barbas longas e  níveas como leite mugido. Vestia-se com roupas de saco , sandálias currulepes. Trazia aquele ar de quem não tomou o gardenal todo :  Olhos aboticados e cabelos desgrenhados. Instalou-se, numa palhoça, numa área próxima à subida da Serra da Jurumenha. Chamava-se Apurinã , tinha voz pausada e cavernosa e vivia, em seus sermões, relembrando grandes catástrofes bíblicas e ameaçando os pecadores com as labaredas do inferno e as sete pragas do Egito. O povo, carinhosamente, o chamava de Pai Nanã. Aos poucos, o beato foi acumulando seguidores, principalmente, quando, um belo dia, anunciou o final dos tempos. O mundo acabaria no dia 28 de Outubro de 1999 de um grande terremoto,  seguido de explosões vulcânicas, fogo e, finalmente, os mares invadiriam as terras num novo dilúvio.  Pai Nanã tivera essa visão , num sonho, em que a Virgem lhe aparecera e alertara: O criador, cansado de tantos pecados da humanidade, resolvera deletar o mundo e, talvez, começar de novo tudo, após um upgrade.
                                   O povo de Matozinho, cansado do mesmismo , empurrou a única porta que  viu à frente para fugir daquela enrascada. Robledo terminou eleito com quase 70% dos votos. Assumiu o governo em 1995, para a alegria de todos, transportando um caminhão de esperanças. Votação tão expressiva carregava consigo uma enorme responsabilidade, eram inúmeras  as demandas da cidade, após tantos e tantos anos de “venha a nós e nada a vosso reino”.    Rapidamente, no entanto, o povo de Matozinho descobriu que tinha trocado égua por biroba. Robledo não possuía qualquer tino administrativo. Envolveu-se com secretários piores que ele. Varava o terceiro ano do mandato e não se contava uma obra só de relevância no município. Postos de Saúde fechados, Escolas sem merenda escolar, ruas esburacadas. Ipueira andava escondido, despachava cada dia em um local diferente, temendo as cobranças.  Daí terá vindo talvez  seu apelido : ” Robledo Manipueira”.
                                   O último ano do mandato do nosso edil coincidiu com a terrível profecia de Pai Nanã. Vendo a cidade devastada, os matozenses descobriram outras razões para acreditar no fim do mundo. Os dias que antecederam o fatídico 28 de outubro daquele 1999 foram de intensa agitação na cidade. Todos carregavam um ar de desespero, como se estivessem perpetrando seus últimos atos . Pai Nanã, uma semana antes, conclamou todos a subirem para Serra da Jurumenha. Acreditava que lá em cima, talvez, houvesse ainda alguma chance de escapar do fogo e da inundação.
                                   Matozinho praticamente esvaziou naqueles dias que antecederam à previsão terrível de Pai Nanã. Uma multidão de maltrapilhos se acotovelava em cima da Serra, esperando as horas finais. Choravam, rezavam, se abraçavam. Pai Nanã exortava a todos pedirem perdão dos seus pecados e exercerem entre si  milagre libertário do perdão. O Dia 28  amanheceu  trazendo, já nos seus primeiros raios, claros sinais do apocalipse vindouro. Uma chuva persistente, com trovões de estalo que simulavam os tremores de terra previstos para logo mais.  O clima entre os fiéis era de gado indo para o matadouro. À tarde, porém, a chuva cessou e o céu se abriu. As horas se passaram sem mais atropelos. Quando o dia 29 por fim chegou, sem que nada tivesse acontecido,  trouxe, junto, uma mescla de alívio e desapontamento. Pai Nanã , desconfiado, tentava entender onde teria errado na interpretação da profecia. Começaram todos a descer a serra. Pela trilha íngreme da descida iam se aproximando de uma Matozinho  arrasada, suja, triste e esburacada e, pior, sem vivalma. De repente, Jojó Fubuia que resolvera , pelo sim, pelo não, providenciar seu próprio dilúvio etílico, com a voz tropa como se sofrera um ramo, virou-se para Pai Nanã e disse, olhando para Matozinho que se aproximava :
                                    --- Pai Nanã, fique triste não, homem de Deus , sua profecia tava certa! Você só errou a forma do acabamento do mundo. Num era de fogo nem água não !
                                   -- Como assim ? -- Quis saber, um Nanã cabisbaixo.
                                   O mundo se acabou foi de veneno, Pai Nanã!  De veneno !
                                   --- Veneno ? Que veneno ? Você tá é bêbado, seu Jojó !
                                   Jojó, então, como um profeta apocalíptico ou apoquetílico , lascou :
                                   --- Manipueira, Pai Nanã ! Manipueira foi que acabou o mundo !


Crato, 19/06/15

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O último clique da velha Rolleiflex


“A beleza pode ser vista em todas as coisas,
ver e compor a beleza é o que separa
 a simples imagem,  da fotografia”
Matt Hardy

                                              
                     A aquarela caririense esmaeceu esta semana, quando caíram por terra a câmara e o pincel da nossa querida D. Telma Saraiva. Fechou-se, naquele instante, uma gloriosa página da Cultura do Sul do Ceará, quando plainou , a caminho do infinito,  a última pioneira da fotografia na nossa região. D. Telma descendia de uma plêiade de fotógrafos que , por quase cento e cinquenta anos, vinha registrando, meticulosamente, o cotidiano caririense, as mudanças e os impactos nas nossas paisagens exteriores e interiores. Desde Manoel Biserra de Mello , o primeiro fotógrafo itinerante que por aqui aportou em 1886; passando por Luiz Gonzaga Martiniano da Costa que firmou o primeiro ateliê fotográfico da região em 1901; por Pedro Maia, o artista da câmara mais importante  nos anos 20-30, até Júlio Saraiva Leão que entregou  o bastão à filha; somaram-se, sucessivamente,  os nossos cronistas fotográficos em terras de Frei Carlos. Esta semana, por fim, quebrou-se, indelevelmente, o último cálice de cristal da nossa prateleira. Estilhaçou-se o Daguerreótipo e, por incrível que possa parecer, um daguerreotipo colorido.  

                                   D. Telma descendia de uma tradicional família ligada umbilicalmente às artes . Seu Tio, Cesário Leão, fora ator e músico;  Salviano Saraiva , irmão, um dos mais renomados atores caririenses e , depois, o mais importante fotógrafo de estúdio da capital pernambucana. Sem falar em Júlio Saraiva, seu pai, um dos pioneiros da fotografia no Ceará  e um urbanista dos mais inspirados. A Júlio devemos os mais bonitos cartões postais de Crato nas décadas de 40-60.  D. Telma  nasceu neste berço artístico e teve sua vida congenitamente traçada. Dedicou-se, desde cedo, embebida pelo cheiro do colódio e da prata, à fotografia e especializou-se em fotos de estúdio, talvez porque lhe fosse mais fácil conciliar a arte que abraçava quase como predestinação, às  atividades domésticas. E mais, artista plástica intuitiva, descobriu que era possível sim, associar a fotografia à  pintura, com vantagens vultosas. Conseguia dar cores às fotos ( numa época do preto-e-branco) , tirar possíveis incorreções ou defeitos ( uma espécie de photoshop pré-histórico) e  dispensava as longas seções de pose dos modelos imprescindíveis em caso de pinturas. Essa técnica apurada , nos últimos tempos, terminaram por lhe dar renome internacional.
                                   A Fotopintura  havia sido inventada por Disdéri em 1868 e foi introduzida no Brasil por um dos únicos fotógrafos portugueses da nossa história  : Insley Pacheco. Aqui, no Cariri, a técnica fora empregada pela primeira vez pelo fotógrafo itinerante José Ribeiro em 1904. Telma Saraiva aperfeiçoou a técnica original,  montando-se na intuição e  nos novos avanços tecnológicos da arte fotográfica.
                                   Outro pioneirismo da nossa artista foi de gênero. A Fotografia no mundo sempre foi extremamente masculina.  No Brasil, nos primórdios da arte, apenas uma mulher havia se destacado: Henriqueta Harms que montara um ateliê no Rio de Janeiro em 1851. D. Telma Saraiva  teria sido um caso único no nosso estado e deve ser considerada a grande Dama da Fotografia no Ceará.
                                   Pacientemente, entre os cliques e  pincéis, nossa artista bordou um gigantesco painel iconográfico da região. Sua Galeria  não se encontra fechada entre muros : expõe-se no mural da Chapada do Araripe. Suas fotos estão expostas em milhares de lares,  registrando o verdor dos anos e os sorrisos abertos de muitas e muitas gerações. Foi um prisma que, entre nós, obrou o milagre estonteante da refração.  Hoje, depois do último clique da antiga Rolleiflex, o Cariri todo se dá conta de que,  quando D. Telma pintava as fotos de estúdio, transformando sépias em aquarelas , ela não apenas coloria rostos  e faces sorridentes, ela enchia de cores e de brilho a própria história caririense.  


Crato, 12/06/15    

sexta-feira, 5 de junho de 2015

A Bandeira do Pau

    Santo Antonio de Pádua tornou-se um dos  mais populares santos brasileiros. Nascido em Portugal, no Século XII, teria sido contemporâneo de Francisco de Assis e, numa vida missionária,  terminou consagrado como um dos maiores pregadores da Igreja Católica. No Brasil, talvez por conta da sua origem lusitana, terminou por se firmar num dos nossos mais amados santos.   Antonio é invocado em inúmeras situações dramáticas : na infertilidade, nos naufrágios, como protetor das grávidas, dos idosos, dos agricultores, dos amputados, dos animais e tido, no Nordeste, como um verdadeiro elixir contra o celibato.
           
                        Conta o folclore que ele  teria obrado inúmeros milagres,  entre eles  haveria restaurado todo um campo de trigo já maduro que havia sido estropiado por uma multidão que o seguia. Inúmeras cidades brasileiras o tem como padroeiro, entre elas, a nossa aristocrática Barbalha que há quase noventa anos realiza a sua tradicionalíssima Festa do Pau da Bandeira. As festas religiosas brasileiras carregam consigo aquela mescla típica do profano e do sagrado. Talvez por tradicionalmente terem advindo   das festividades pagãs da Idade Média como a Saturnália e as Celebrações de Fertilidade. Assim,  as  novenas e rezas se juntam a rituais pagãos que vão desde a libações alcoólicas ( “A Cachaça do Seu Vigário”), ao uso do pau da bandeira como símbolo fálico, à coreografias  eróticas em torno do prodigioso vergalhão.  A Festa se assemelha às celebrações de fertilidade ainda hoje presentes no Japão como a Hime no Miya e a Hounen Matsuri.
                        O Pau da Bandeira de Barbalha é , indiscutivelmente, uma das mais concorridas e bonitas festas populares do Ceará. Tem crescido de ano a ano, a cidade toda se enfeita e se engalana para a chegada do Santo casamenteiro. Claro que, numa festividade de tamanhas proporções, sempre existem riscos proporcionais ao público  por ela atraído. Este ano, ocorreu a trágica morte  de um dos carregadores do pau , o Sr. Cícero Ricardo, esmagado pelo imenso tronco durante o transporte. Havia já antecedentes de acidentes idênticos, com fraturas expostas em alguns participantes em anos anteriores. Haviam ocorrido, também, outros acidentes fatais com morte em  carregamentos de paus de santos, como em Caririaçu alguns anos atrás.
                        Em nome da tradição, argumenta-se sempre sobre a necessidade imperiosa de manter o script da festa, exatamente como se vem fazendo nos últimos noventa anos. Existem, no entanto, a meu ver, ponderações que precisam ser feitas. Tudo na vida é dinâmico e, se se reparar bem, a festa mudou imensamente durante todos esses anos. Além de tudo, não é justo se manter culturas nocivas sob o simples argumento que Cultura é para ser preservada. Os sacrifícios humanos fizeram parte de muitas civilizações , nem por isso hoje se defende a sua manutenção. Nossos  índios eram em grande parte canibais, essa Cultura deveria ter sido preservada ?  Por que Cristo se pôs contrário ao apedrejamento de adúlteras, se aquela selvageria era uma profunda tradição entre os hebreus ?
                        Acredito que não existem justificativas plausíveis para a derrubada anual de uma imensa árvore apenas pela simples alegativa da tradição da festa. O Ibama , o governo do Estado, a Prefeitura de Barbalha e a Igreja  têm o sagrado direito de interceder contra esta barbárie. O próprio Santo Antonio teria recuperado todo um campo de trigo , preocupado com o impacto ecológico. É justo, em seu nome, perpetrar anualmente um crime ambiental ? Por que não usar o mesmo angico centenário  deste ano, nos próximos cem ? Teríamos ainda a vantagem de duplicar a festa :  o fincamento do pau no início e a retirada no final das festividades.
                        Quanto à morte de Cícero Ricardo , as autoridades se adiantaram em afirmar que se tratou de uma fatalidade. Para mim, o acidente era  totalmente previsível. Imaginar o transporte de uma árvore de muitas toneladas, por muitos quilômetros , embalada por uma multidão de penitentes , na sua maior parte inebriados pela “Cachaça do Seu Vigário”, tendo que periodicamente pôr abaixo o imenso vergalhão, num movimento que necessita de precisão cirúrgica, certamente se trata de uma fábrica de acidentes. Por que não utilizar métodos mais modernos de transporte em que a segurança seja a principal normal a ser pensada ?  A festa agora envolve um público gigantesco, se comparada a anos atrás, a segurança de todos deve ser prioridade absoluta para evitar as famosas fatalidades previsíveis.  A integridade física dos festeiros deveria ser a principal bandeira do pau.
                        Ademais, numa festa de tamanho vulto, faltaram as blitzes  com seus bafômetros. A sensação que temos é que há ingerências políticas, fazendo  com que a polícia rodoviária maneire , lave as mãos , sob pena de prejudicar a diversão do pessoal. Quantos motoristas saíram da Barbalha sem a mínima condição de dirigir , pondo em risco não só suas vidas mas a de outros transeuntes ?  O Código Nacional de Trânsito não tem aplicação prática nas grandes festividades nacionais ?  
                        Diante da pretensa fatalidade, o público sequer se compungiu com o acontecido. A diversão continuou. Depois, sentada a poeira, as opiniões divergiram. Os organizadores sacaram a versão do fatalismo: o acidente estava escrito nas estrelas. Os incréus lembraram de imediato da pouca capacidade milagreira do Santo que sequer conseguira proteger seu pupilo Cícero Ricardo. E os crentes, preocupados com o profanismo da festa, sacaram o Velho Testamento e comentaram, abertamente, o acidente fatal como um castigo dos céus. À frente de tudo, no entanto, encontra-se o Estado, nas suas mais variadas instâncias,  que tem como função precípua proteger a população e dar-lhe a segurança necessária . Há necessidade , sim , de regulamentar a festa, de criar mecanismos para que acidentes previsíveis e evitáveis  não aconteçam. A Igreja, por sua vez, que tem, historicamente, o mando da festança, precisa tomar as rédeas da solenidade, pois o princípio básico de qualquer religião é sim a preservação da vida. O que aconteceu no último domingo não foi uma mera fatalidade, apenas a Crônica de uma Morte Anunciada. Outras tragédias continuam plantadas esperando a floração, regadas, ano após ano, pelas águas de uma perniciosa tradição. Quantos sacrifícios serão ainda necessários até descobrirmos que a Vida ,sim,  é que é a maior    festa ?


Crato, 05/06/15