Francisca Eudóxia da
Conceição. Um nome enorme ! Nem carecia
de sobrenome! Eram três nomes próprios se espremendo, como podiam, num só
epíteto. Podia ter sido , sim , opção dos pais, se ela , um dia , os tivesse
conhecido. Uma embirra qualquer deles ou uma escolha simples pela sonoridade
das palavras: uma paroxítona, a martelada de um ditongo crescente, no meio, com
ares de proparoxítona e finalmente a
oxítona como fecho. O mais provável, no entanto, é que tenha sobrado para o
tabelião, o batismo da menina pobre, sem parentes ou aderentes conhecidos. Ao
menos sobraram formas carinhosas de denominá-la : Chica, Dodó, Ceiça. Criada por outras almas pobres e, por isso
mesmo, generosas, Francisca desde cedo seguiu o curso inexorável do seu destino
de órfã. A luta pela sobrevivência tangeu-a da escola. Pequenina ainda ensaiou
aprender o bê-á-bá, mas rápido descobriu que não levava jeito para as letrinhas
e os números. Começou como uma espécie
de babá mirim de casais mais abastados e, já taluda, fez-se empregada
doméstica. Disposta, trabalhava como um mouro, mas facilmente se percebia que a
disposição física buscava compensar uma
leve deficiência mental. Mocinha , enrabichou-se por um caminhoneiro – Cacildo
do Truck-- e andou juntando os trapos. O amancebo, no entanto, durou pouco. Um
belo dia, uns dois meses depois de casada, Ceiça saiu em desabalada carreira de
casa e fugiu de Cacildo, a partir daquele dia, como o vampiro do alho. Os
patrões apertaram de um lado e do outro tentando saber a razão do desencanto
súbito com as hostes matrimoniais. Ela, no entanto, desconversava, ficava
trombuda e mantinha silêncio obsequioso.
Eram
muitas as histórias de Dodó, espalhadas de casa em casa, por seus múltiplos
patrões. Um dia o dono da casa chegou
mais cedo , com ar pesado e cara de pouca conversa. Trancou-se no quarto e
ligou um som com um disco de músicas clássicas: Ravel, Mozart, Schubert. Dodó
ficou encucada com aquela trilha sonora . Que diabos estava acontecendo ? Acostumara-se
às triviais que curtia : breganejo ou
forró puxado para o caribenho. Quando a patroa chegou já à noite, ela,
preocupada, derramou sua apreensão:
---
Patroa, a coisa tá feia ! O patrão chegou cedo em casa , se trancou, e só
ouve umas músicas estranhas,penosas , aquelas músicas de quando morre presidente...
Chica
morava numa casinha “tomara que não
chova” , na periferia da cidade. A vizinhança , na sua maior parte, era um
ajuntamento de damas da noite e que borbuletavam por perto, em busca de clientes
eventuais. No quenguismo, Chica percebera, havia uma clara estratificação
social. Perto dela ficara a zona chamada de “farinhada” e que abarcava os mais
lascados dos clientes : bêbados, trabalhadores rurais que vinham para feira,
drome-sujos. As meninas, também, tinham perdido o aroma da juventude e, por
isso mesmo, foram sendo jogadas, pouco a pouco, para clientes menos exigentes.
Um dia, a
patroa percebeu que a funcionária chegava com sinais claros de noite mal
dormida: olhos remelentos, bocejos, cochilos pelos cantos. Interrogou-a sobre a
razão de tamanha moleza: entrara também na farra ? Dodó, então, explicou as razões da
indisposição. Passara toda noite acordada, por conta da zoada e burburinho das
meninas nas suas galinhagem e garipagem
. Para tanto, usou um coletivo sacro-profano
totalmente inusitado :
---
Não dormi um pingo, patroa ! A noite toda foi uma putaria só, lá na rua ! Um mundo de quenga viçando !Era a
Diocesa das Rapariga ! Vôte !
Um
dia, as funerárias da vila lançaram uma
novidade que rapidamente se alastrou, tornando-se um dos sinais de status : o carrinho para
transportar o caixão. Antigamente o féretro carregava-se nas mãos dos próprios
parentes e amigos que se iam revezando neste mister. Ceiça estava varrendo a casa
quando ouviu um burburinho na rua. Aproximou-se da janela e percebeu tratar-se
de um enterro. Coroas carregavam coroas, na frente ; meninas velas acesas e
parentes soluçavam pelas beiradas, seguindo a turba. Dodó estava acostumada àquela
atração de cidade pequena: a casa onde trabalhava era próxima ao cemitério
local. Notou, no entanto, uma coisa esquisita. O caixão, aderira a uma novidade
que não conhecia, vinha em cima de um
carrinho e empurrado pelos circunstantes. Rápido, ela gritou para dentro de casa,
alertando a patroa da inovação :
---
Chega, Madrinha ! Corre ! Vem olhar um
defunto andando de bicicleta !
A
história da súbita separação de Chica
sempre fora um dos maiores mistérios da vila. Que teria acontecido ? Por
que deixara Cacildo, assim tão intempestivamente e, mais, de forma tão definitiva?
Nem adiantava pressionar Dodó, ela se
danava e fugia do assunto como lobisomem do sol. Um dia, no entanto,
numa confissão, Padre Arcelino pressionou. Por que ela tinha quebrado o sagrado
sacramento do matrimônio?
---Casamento
que Deus uniu, D. Francisca, só a morte separa ! Isso é pecado grave !
Chica,
chorosa, então, resolveu quebrar o segredo mais guardado que o terceiro de
Fátima.
---
Seu padre ! Eu cumpria minhas obrigações. Naquele dia, o diabo Cacildo chegou
bêbado e com o cão nos couros. Pois , seu padre, ele queria era me acunhar por
trás, já pensou? Espia ! Eu fiz foi
rifugar ! Ele pensava o quê? Que eu era
mulé compreta ? Naaaannnn !
Crato, 16/05/14
Nenhum comentário:
Postar um comentário