Despertou com aquele gosto arenoso na boca,
como se tivesse ingerido todas as cinzas da quarta-feira ingrata. Os sons
metálicos de um frevo distante e agora quase que ininteligível se dissolviam no
ar. As ruas se recobriam com os últimos espólios da guerra dos quatro dias.
Confetes e serpentinas se misturavam ao lixo comum , agora já sem asas e magia.
Até os rapapés febris dos passistas do “Bacalhau do Batata”, o soldado
de Pompéia da folia, pareciam já longínquos
e perfeitamente obsoletos.O mundo em volta ia pouco a pouco perdendo seu
ar de festa e a vida crua, aguda como a ponta do punhal, voltava a preencher o
espaço com um insuportável clima de normalidade. Os homens começavam a arrancar
suas máscaras fictícias e, paulatinamente, iam cobrindo a face com aquelas
outras mais reais e duradouras. Arlequins sem Colombinas, Catirinas viúvas de
seus Mateus , Super-Heróis sem espinafre, amolecidos pela Kriptonita
cotidiana, perambulam sem destino num planeta estranho e desconhecido. A La Ursas
matracam em compasso ternário as suas matracas. Papangus já sem a
proteção do anonimato retornam para casa a fim de prestar contas a suas patroas da fuga do
presídio doméstico por tantos dias . Caboclos
de Lança fazem a viagem de volta à roça agora já sem o luxo cerimonialista
da túnica multi-espelhada e da farta cabeleira multicolor. Como se o ritmo da
vida se marcasse agora pelo toque cadenciado, em mantra, do seu chocalho. Os
Maracatus, respeitosamente, silenciam seu baque virado e retornam,
religiosamente, aos terreiros.
Cuspiu no chão aquele gosto
de cabo de guarda-chuva e ficou matutando : a vida se resumia exatamente àquilo
: à Festa, à Celebração. A chama acesa e em brasa da existência se consubstanciava no
anarquismo inocente do Carnaval. Perdidos todos , sem saber de onde viemos e
para onde marchamos, passamos a comemorar a esta louca e misteriosa viagem.
Travestidos todos dos nossos desejos mais impenetráveis, abraçando
desconhecidos, dançando com figuras
aparentemente estranhas e beijando línguas que jamais teremos capacidade de
saborear outra vez. Tocamos outros corações com a vara de condão do etéreo e do
fugaz e imprimimos um volátil ar de eternidade nos nossos sentimentos. A festa
nos abre, quase que imediatamente, a perspectiva sombria do fim-de-festa. O
pistão que ataca metalicamente o “Vassourinhas” é o mesmo que logo
depois entoará o Toque de Silêncio. A vida se vai escoando assim mais entre
bemóis que sustenidos. E adiante, por mais efervescente e estupenda que tenha
sido a festividade, as máscaras cairão por terra, as serpentinas perderão sua
sinuosidade ofídica e a vida terminará por cobrir-se daquela substância que
preenche as gargantas e as quartas-feiras : Cinzas !
22/02/08
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