Cristo? Todos responderam: Seja
crucificado!
O governador tornou a perguntar: Mas que mal
fez ele? E gritavam
ainda mais forte: Seja
crucificado!
Pilatos viu que nada adiantava,
mas que, ao contrário, o tumulto
crescia. Fez com que lhe
trouxessem água, lavou as mãos diante do
povo e disse: Sou inocente do
sangue deste homem. Isto é lá convosco!
Mateus 27: 22-24
François
não se abalou muito quando a notícia chegou subitamente à Delegacia , trazida
por um desses meganhas de plantão. Assumindo aquele cargo há mais de dez anos,
já se acostumara com o cheiro forte de sangue, correndo e fervendo pelo asfalto
quente, em feitio de chouriço. Se os homens carregavam consigo um anjo e um
demônio, ali , naquela seccional do inferno, não dava para perceber a face
angelical. Viera substituindo o delegado anterior , aquele que tivera uma
administração eivada de denúncias múltiplas : roubo, cumplicidade com o crime
organizado, tortura de prisioneiros, vistas grossas para prostituição de
menores, preconceito nas ações repressivas . Possivelmente fora escolhido não
pelo histórico favorável de pureza e lhaneza de trato. François carregava
consigo o mesmo pecado original : durão, não poucas vezes julgara pretensos
bandidos à pena de morte e executara a penalidade sem nenhum remorso. Comparava
sua função a de um urubu : “Temos que comer a
carniça e livrar a sociedade do mal cheiro! Mesmo assim todos vão ter
nojo de nós !” Nosso Delegado tinha uma qualidade que o fazia bastante
singular. Era tranqüilo, transparecia
uma aparente calma budista, educação e
segurança e possuía grande traquejo no trato com a mídia. Seus superiores
tinham, em mãos, o candidato ideal : um esgotador de fossa séptica que
conseguia não se imantar de qualquer cheiro pútrido.
A
chegada do samango, meio aflito, naquela tarde de sexta feira, não o tirou do
sério. Com palavras que quase se abalroavam umas nas outras, contou o ocorrido.
Estava havendo um grande B.O. , naquele momento, no centro da cidade. Um
adolescente furtara um celular de uma vitrine e saíra em desabalada carreira.
Várias pessoas presenciaram o ocorrido , firmaram trincheira e se puseram , na
perseguição do menor. Cercaram-no na praça principal da cidade. O soldado
tentara conter a turba, mas sozinho, corria o risco de entrar no pau, também.
Viera então pedir ajuda ao Delegado para juntar contingente e evitar o pior.
François
levantou-se sem atropelo. Estranhamente, chamou apenas o seu subordinado e
partiram céleres para praça, a apenas uns cem metros da Delegacia. Poderia ter
arregimentado outros soldados, mas preferiu enfrentar a questão sozinho. Em lá
chegando, deu de frente com os preparativos do massacre. No chão, um menino
todo ensangüentado, olhos injetados de terror. Ao derredor, a turba enfurecida , incontrolável, a
espezinhar e chutar seguidamente o rapazinho. François tomou a frente e pediu
calma que a justiça estava ali representada. A multidão, porém, como um estouro
da boiada , não lhe deu ouvidos. O delegado estava armado e ainda pensou em dar
um tiro para cima para amedrontar os circunstantes. Mas depois ponderou consigo
mesmo : tinha que respeitar a democracia, a maioria sempre tem razão, não é
mesmo ? Ademais, não existe crime possível cometido por tantas pessoas
ajuntadas. Ele, por outro lado, fizera já a sua parte, bem que tentara, mas não
conseguira evitar , né ? Nisso , um paralelepípedo
foi arremessada na cabeça do pobre infrator , como um golpe de misericórdia. O
sangue espirrou . Algumas gotas terminaram por tingir a roupa e os braços do
delegado. Ele saiu, calmamente, e lavou as mãos na fonte da praça. Saiu
conformado. Bem que tentara ! Alguma coisa porém travava o seu peito, como se
tivesse ali uma porta de ferro com tramela.
À tarde, deu uma esmola
de dez reais a um mendigo que o estendera a mão na rua. Saiu leve e reconfortado. Não fizera nada,
afinal ! Fora apenas um mero espectador. Sou uma pessoa simples e caridosa ,
pensou com seu cassetete, preenchendo um
silêncio esquisito que ecoava de dentro da alma. Entrou na academia e foi fazer
Pilates !
J. Flávio Vieira
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