ANATOMIA
Formol
saturante na atmosfera
Ruídos
metálicos arrítmicos
Albor de
batas numerosas no acromatismo da sala comum
Burburinho
de vozes em borbotões descompassados
Movimento
quase Browniano de pessoas indo e retornando
Dínamo da
curiosidade
No meio da
sala seu corpo contrastante
Seu silêncio
passível em meio ao bulício
Seu
sedentarismo ante todo motus
Sua pele
enegrecida e a alvura das batas
Suas feições
de terror ante os sorrisos brotos nos lábios dos anlunos
Sue rigidez
frente à versatilidade do ambiente
Ante tudo e
todos, você se individualiza, Denise
Sua boca
rija, escancarada
Como
querendo aspirar a vida
Prender ,
inutilmente, o último suspiro que te lhe
escapou
O hífen que
lhe unia ao mundo
Ou – quem sabe?—desejando
gritar por seus pulmões carcomidos
Gritar
contra a vida madrasta
Um protesto
contra a sorte ingrata
Que tudo lhe
negou na vida e tudo lhe negaria na morte
Ou bradar,
bradar simplesmente,
Recebendo a
morte num ósculo,
A morte-vida
A morte inútil
pra você que já morrera há muito e muito
Com seus
sonhos
Com suas ilusões
Parece que
leio
No
ciclopismo do seu olho único
A última
imagem garvada por sua baça retina:
Uma cama de
ferro
Sem um
parente a seu lado que lhe reclamasse o corpo
Um aderente
que transpirasse uma lágrima
Um gemido
estrangulado
Numa saudade
e tristeza --- momentâneas que fossem
Quem sabe,
sem uma enfermeira sequer
Sem um
sacerdote que lhe imprimisse uma esperança
Um desengano
acrescido
Que diria,
Denise que você morta
Seu corpo
frágil iria servir tanto
Justamente
àqueles que em nada lhe serviram em vida ?
Que seu
corpo perduraria sobre a terra
Como para
compensar o tão pouco que você viveu...
Que você
morta viveria bem mais, ao menos
Que ricaços
Senadores
Presidentes
Que vivem
sempre --- como sempre --- enquanto a carne vive ?
E não é ela
tudo ?
Com a morte
dela se morre totalmente
Você ainda
vive, Denise
Não para a
maioria das pessoas
Para quem
você é apenas um instrumento
Para dissecar
Cortar
Esfacelar
Apenas um
corpo como que de fibra sintética
Um amontoado
de peças sem individualidade
Para estudar
e receber algumas lágrimas
Provocadas pelo
formol ativo
Para eles
você é apenas um número – o 250 !
Sem nome
Sem vida
Sem
passado
Mas para
mim, você vive , Denise
No seu corpo
caquético
Desnudo
Sem
preceitos nem preconceitos
Vejo mais
que os outros vêem
A cada
artéria daquelas
Descobertas
pelo bisturi agudo, intransigente
Vejo mais
que um simples nome didático
Imagino o
quanto de sangue ali correu
A seiva da
sua vida
No seu
coração
Mais que um
órgão com faces, bordas e pólos
No seu
cérebro
Mais que
circunvoluções, girus, lobus
Construo o
quanto ali se reproduziu
Sua
vivacidade
Suas palavras
Suas
emoções
Seus
risos
Suas
tristezas
Suas
superstições
Seu
desengano e revolta quando a entropia já era enorme
Vejo um
órgão, o pico da evolução
O mais
sublime que o universo em milhões de anos conseguiu alcançar
Jogado a um
lado, como uma pedra
E, pior, que
não entendem
Não imaginam
O que foi
você
Você vive,
momentaneamente que seja, mas vive
Que importa
hoje ou amanhã lhe destinem finalmente
À vala ?
Em mim
sempre ficará a marca,
A cicatriz
O
gilvaz
Daquilo (
para os outros restos, pedaços sem individualidade)
Que foram
seus malbaratados sonhos
Sua
esperança
Sua fé na
felicidade inexistente
Sua desgraça
Seu
sofrimento
Daquilo tudo
que certamente foi e é você : Denise !
Recife/ 1972
( Versos guardados com cuidados quase
paleontológicos pela colega Maria do Carmo Fonseca Gomes (Carminha) e exumados, 40 anos depois, na Festa de 35
Anos de Formados dos Médicos da UFPE/1977)
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