Há quem
considere a Crônica um gênero literário menor. Talvez, comparando com o Conto,
o Romance, o Ensaio, a Poesia, não tenha ela o mesmo charme e a mesma fama . Desconfio, no entanto, que esta opinião advém
da volatilidade maior do estilo: ligada geralmente aos fatos mais corriqueiros
e cotidianos , possui uma permanência mais etérea. O texto publicado no jornal,
hoje, amanhã já está, muito
provavelmente, limpando as vidraças da sala. Trabalhar com esta impermanência ,
tecendo o bordado numa ponta, enquanto o tempo desfaz o fio do outro lado,
parece-me uma coisa mágica e remete
quase que imediatamente à efemeridade da vida: matéria prima de todos os
gêneros literários. E não são poucos os grandes escritores que soçobram ante os
mistérios da Crônica; faltam-lhes, tantas vezes, leveza, despojamento, humildade para enfrentar
o profundo abismo que é escrever acossado pelo grande e implacável apagador das horas. Machado de Assis, meu
escritor predileto, talvez o maior que o país já produziu, não me parece um
grande cronista. Humberto de Campos, o
mais produtivo da sua época, hoje é totalmente esquecido. Lembro da grande
coleção azul, dele, de mais de trinta livros , na biblioteca imensa do Tio
Sávio Pinheiro. Devorei-a, na adolescência, com voracidade. Talvez os textos
fossem datados demais e tenham perdido o glamour com o advento das novas
gerações. Rubem Braga, certamente ,mantém-se distanciado como o mais importante escritor do gênero, em língua portuguesa, possivelmente
porque é profundamente poético e poesia
não tem idade : banha-se na fonte da eterna juventude.
O
certo é que me apetece esse encanto de garimpar nossa doce história cotidiana. Fatos
aparentemente sem importância, gestos leves, movimentos fortuitos, personagens tidos
como menores e que cairiam rapidamente
na lixeira da memória não fosse o olhar atento do cronista. E mais: tentar
perenizá-los usando a mesma argamassa amorfa, frágil e etérea com que são constituídos.
Querem
um exemplo ? Esta semana publicou-se uma
notícia trivial na televisão. Foram devolvidos a alguns japoneses, alguns
objetos tragados no terrível Tsunami do ano passado. As marés os carregaram até
o Alaska, na outra extremidade do mundo. Algumas pessoas os recolheram e
identificando alguns deles os devolveram aos seus donos no Japão. Sakiro Miura,
uma japonezinha simpática, recebeu uma bóia que emoldurava a porta da sua loja
de mergulho: nela estava escrito, em caracteres japoneses, o nome do esposo,
falecido há 30 anos. Um rapaz recebeu uma bola de futebol onde gravara o próprio
nome e estampava várias assinaturas dos
seus colegas de escola. A bola e a bóia não possuíam qualquer valor monetário e
a notícia, tirando-se o inusitado, não carrega maior importância. Debite-se na
conta ainda a gentileza dos moradores do
Alaska : perceberam que , de alguma maneira, junto com os objetos, devolviam à
Sakiro e ao rapazinho um pouco daquilo que a tragédia havia arrancado das suas
mãos. A bola e a bóia restituíam junto a esperança: o combustível de toda nossa
jornada nesta terra.
Atrás
da notícia, escondia-se uma verdade só perceptível ao cronista. O preço real
das coisas não pode ser avaliado apenas por seu valor venal: de troca,
de venda , de escambo. Existe tantas vezes um valor sentimental que imanta os
objetos e que não pode ser mensurado por trena , nem pesado com balança Fillizola.
Sakiro não negociaria sua bóia por qualquer dinheiro desse mundo. E mais : só
ela consegue dimensionar este custo, ninguém mais desse mundo. Seu tesouro está
assim, biblicamente, imune às traças, aos ladrões e ao caruncho.
Quando
os tsunamis por fim devastarem as praias da nossa existência, estes serão os
únicos bens que boiarão e que um dia , quem sabe, o destino devolverá à nossa
porta, para nosso gáudio, como a bóia de Sakiro Miura : uma florzinha que
desabrocha em meio ás ruínas que
restaram.
14/06/12
4 comentários:
Repleta de poesia, a crônica da crônica. O cotidiano pode ser eternizado de forma inteligente. Sem preconceitos. Toca a bola pra não boiar. Você não é menor que o Rubem Braga. Parabéns!
Abraço ao grande Sávio, poeta inspirado que circula com igual destreza em muitos gêneros literários.
Abraço ao grande Sávio, poeta inspirado que circula com igual destreza em muitos gêneros literários.
Dr. José Flávio, que crônica linda!
Não considero a Crônica, um gênero literário menor. Como considerá-la assim, se a crônica, desde sua origem, é um "relato em permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido”. (Davi Arrigucci Jr. - "Fragmentos sobre a crônica" - Folha de São Paulo, 01/05/87.). E ainda, se na crônica, "Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação. Para voltarmos mais maduros à vida...". (- Antônio Cândido no artigo "A vida ao rés-do-chão".).
É evidente, que, o sucesso da crônica fica na dependência da fibra do cronista, daquele que sabe operar com encantamento, palavras, expressões, sentimentos. Admiro a maneira como enxerga os fatos, transforma-os literariamente e expõe em “vitrine”, suas crônicas para leitura.
Parabéns por sua percepção, de como converteu a notícia que ouviu, em crônica tão bela — “A Bola e a Bóia”.
Realmente: “Atrás da notícia, escondia-se uma verdade só perceptível ao cronista”.
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