Pois bem, parece que seu grito foi por fim ouvido. O trem há de voltar, mais cedo ou mais tarde ( a segunda hipótese é mais provável). Claro que já não terá o glamour dos velhos tempos da Maria Fumaça. Virá com uma abrangência mais regional e com mais velocidade. Competirá com outros meios de transporte bem mais modernos: o ônibus, a topic, o carro, o aeroplano. A previsão visionária e artística do nosso Jonas , no entanto, parece ter sido nostradâmica : voltará, com certeza, o transporte do pobre.
O trem nos é tão próximo e singular que inclusive utilizamos este nome como um super substantivo concreto ou abstrato que pode significar qualquer coisa neste mundo. Que trem é esse? Bote os terém tudo no carro e vamos simbora ! Ele sentiu um trem e caiu durinho ! Imaginem, leitores, o mar de histórias que deve permear uma relação tão próxima de caririenses e a Maria fumaça! O Descarrilamento, o atraso, a perda do trem, o condutor, o maquinista, o chapeado, as estações, o vendedor de passagens... Tentei puxar pela memória algumas dessas histórias , contadas pelos grandes memorialistas da família e que , na sua maior parte, já tomaram aquele trem com passagem de ida para outras paragens. Aí vão algumas. Quem lembrar de outras, já sabe: entrou na perna do pinto...
Zé Praxede , um poeta popular,( aquele do "Dotô , inté outro dia...") tem um lindo poema que se passa em um trem. O condutor chega cobrando a passagem de um velho, sentado no vagão, para o devido picotamento. Aboletado na cadeira de trás, vai um compadre dele. O passageiro diz que não tinha dinheiro e não comprou . O condutor pergunta para onde ele vai e o velho responde que para Baturité. O funcionário, impassível, avisa que se não adquirir o bilhete vai ter que descer na próxima estação. O velho começa a chorar e diz que está indo para o casamento da filha única e que não pagou o bilhete por inteira falta de condição. Para não ver a filha casando prefere ter os olhos vazados e , se tiver que descer do trem, prefere que seja jogado pela janela, com o bicho em movimento, não tem mais sentido viver. O condutor, também pai, se sensibiliza. Meio penalizado diz tudo bem, que se for descoberta a liberação pode perder o emprego, mas vai fechar os olhos e permitir a viagem para uma causa tão nobre. Passa, então para a cadeira subseqüente e solicita a passagem ao compadre do outro. Passagem ?
--- Comprei não, meu senhor, eu vou inconvidado para a festa !
Outra : Padre Luiz Antonio, uma das figuras mais irreverentes do Cariri, estudava em Fortaleza, no Seminário da Prainha, ainda como seminarista. Menino pobre, encomendou o chapeado para levar seus pertences até à estação. Voltava de férias. Quando lá chegou, perguntando o preço do frete, o homem explorou: 10 mil réis. Luiz estrilou! Observou que o número da plaquinha do chapeado tinha exatamente o número dez e já debochou: -- Tá doido ? Vocês cobram é pela placa ? Se eu soubesse tinha procurado o chapeado número 1. O carregador parecia inflexível na negociação , Luiz, porém não aparentou pressa. Disse que pelo trabalho só pagava dois mil réis e estamos conversados. Entrou no trem e começou a arrumar as caixas no vagão, para a longa viagem de volta. A negociação continuava pela janela. A buzina do trem então soou pela primeira vez. O chapeado agoniou-se e baixou para sete mil réis. Luiz continuou inflexível. Na segunda buzinada, já mais vexado, o homem deu mais um desconto : -- Me dê pelo menos , cinco ! Luiz não se moveu. No terceiro e derradeiro apito, quando o trem começou a se mover, o carregador desesperado pulou na janela : ---- Me dê os 02, seu padre, tá bom! Luiz , então, jogou o combinado pela janela, comentando a importância que tinha o trem até nas negociações de dívidas.
O velho Mané Vieira, meu pai, gostava de contar uma outra potoca ferroviária. Um matuto andava de trem pela primeira vez. Mais desconfiado do que cachorro que cai de caminhão em noite junina. Precisou ir ao banheiro, no percurso da viagem. Lá, terminado o serviço em meio aos solavancos, viu uma pequena manivelinha e acreditou se tratar da descarga. Puxou ! De repente, aconteceu o maior reboliço. Aquilo era o freio a vácuo de emergência do vagão. O trem continuou em movimento com aquele carro travado. Um barulho ensurdecedor, faísca para tudo quanto é lado ! E trem para estancar vocês sabem como é : para parar em Senador Pompeu tem que começar a frear em Iguatu! O condutor chegou correndo no vagão travado e fez a maior confusão. Brigou, perguntou se o matuto estava doido e sapecou uma multa de cinco contos de réis, pelo transtorno. O pobre do homem, trêmulo, resolveu pagar. Tirou uma nota de dez contos e entregou ao funcionário. O condutor disse que não tinha troco, mas que antes de Acopiara lhe daria o resto do dinheiro. O tempo passou e nada ! Certamente o condutor , imaginando tratar-se de um caipora, concluiu que seria fácil engabelar o homem. Desapareceu! Como o multado deveria descer impreterivelmente em Acopiara, tchau ! O matuto aguardou e, como já se aproximava o destino, começou a se agoniar. Andava de um lado para outro e nada do funcionário da RVC. Já chegando perto de Acopiara, ele entrou novamente no banheiro e puxou a bendita manivelinha mais uma vez. Zoada, barulho, faísca novamente ! De repente, entra finalmente o condutor esbaforido em meio ao tumulto.
--- O que foi isso, agora ? Ficou doido, rapaz?
O matuto, sorridente, concluiu:
--- Num é nada não, só o troco , seu condutor !
08/10/09
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