sábado, 19 de setembro de 2009

Maré Vazante

A meninada se espalhou pela areia da praia, como num parque de diversões. Manhã cedinho, no céu brilhava um sol reconfortante. Agasalhava todos do frio vento soprado pela bocarra do mar. Algumas meninas traçaram no chão os degraus para o céu da amarelinha e se puseram a pular numa algazarra sem fim, como maracanãs em roça de milho. Alguns guris improvisaram traves com as chinelas e passaram a disputar um rachazinho animado. Um lourinho sardento sentou-se na areia e começou a tocar , numa flauta doce, os acordes do trenzinho do caipira. Alguns outros perseguiam marias-farinha. Um casalzinho ruivo sentou-se contemplativo num tronco e pôs-se a olhar o vai-e-vem das ondas, com olhar perscrutador, enquanto a mocinha segurava na mão uma flor de jasmim. Grupos de meninos, sentados no extenso tapete proporcionado pela maré vazante, começaram a construir palácios, castelos, mansões, carros, edifícios, com a terra úmida. Havia os que , próximo às águas, fizeram uma barragem e trabalhavam cuidadosamente na sua preservação. Outros escreviam , com gravetos , palavras e mais palavras no chão. A menininha sapeca , mais habilidosa, esculpia lindas esculturas : a Barbie, o Bob e um Netuno com um tridente agudíssimo . As professoras observavam todos de uma distância regulamentar, com olhos úmidos de um cuidado que vazava alguma aflição.Próximo ao meio-dia, parece que tinham tocado as doze badaladas da Cinderela. Antes que a gala se transformasse em borralho , o piquenique deu-se por findo. Na beira da praia ficou toda a obra de criação: castelos, palácios, palavras, barragens , músicas e contemplação . Tardezinha, quando os pescadores retornavam do trabalho, a maré havia engolido tudo. Nada havia restado que lembrasse a opulência criativa da manhã . Apenas a florzinha de jasmim boiava ao doce sabor das ondas, sem código, sem senha, sem história. Como chegara ali ? O que representava ? Não se sabia.Assim é o movimento inexorável das turvas águas do tempo. Estamos permanentemente entre duas marés cheias e o que importa é aquilo que construímos na vazante. E edificamos com dedos prenhes de eternidade, como se as ondas já se não avolumassem à nossa volta. Somos livres pedreiros nesta construção: podemos usar o concreto armado como matéria prima ou o cimento do sonho, a cal da arte, o tijolo da poesia. Seja qual for nossa escolha, apenas a argamassa do efêmero estará sempre à nossa inteira disposição. A mansão do peremptório será sempre edificada com o material do volátil.Nestes dias a preamar levou um mestre da maré vazante. Chamava-se Almir Carvalho. Ele soube temperar o caldo da vida com o esmero de um Chef de alta cozinha. Muita bondade com algumas pitadas fortes de boêmia. Firmou amizades sinceras e inquebrantáveis. Uma boate concorridíssima e que nem precisava da presença feminina. Amores poucos, mas eternos e que sobrenadarão no mar dos tempos , como o broto de jasmim : O Clube Regatas Flamengo e Celininha Barros. Seu Almir , seguiu sem que ao menos conhecesse, os preceitos de Thoreau: não deixou que sua vida se estilhaçasse nos pormenores. Viveu beneditinamente, querido por muitos. Como um asceta perfeito conseguiu arrancar felicidade dos mínimos e insignificantes milagres desta vida. Ocupou-se de corpo e alma de alguns poucos afazeres, simplificou a existência, livrando-se da areia movediça das posses, do canto de sereia do consumo. Quando a preamar bateu à sua porta o encontrou feliz e realizado e ele mergulhou nas suas águas, ciente que completava um ciclo e refazia a unicidade da criação.Baudelaire dizia que para suportar o terrível fardo da existência que quebranta os nossos ombros e nos curva em direção à terra faz-se mister embriagar-se sem trégua. E dava as opções possíveis: de vinho, de poesia ou de virtude. Seu Almir, sabiamente, se inebriou com um pouco de cada um desses ingredientes.

17/09/09

Nenhum comentário: