sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A janela de Oruam

 

Taça das Favelas Nacional - E a vista da sua? 📸 Bar A Janela da Favela |  Facebook Tramita na Câmara Municipal do Rio de Janeiro Projeto de Lei, proposto pela vereadora Amanda Vettorazzo,  no sentido de proibir a contratação e o patrocínio, diretos ou indiretos, pelo Poder Público municipal, no todo ou em parte, de artistas, considerando-os individualmente ou em grupos, que façam apologia ao crime, incitem a violência nas apresentações, em todas as suas formas, inclusive contra a mulher, bem como daqueles que empreguem ou incentivem o trabalho infantil e o trabalho escravo. A Lei recebeu, popularmente, o nome de Anti-Oruam, uma referência ao rapper do mesmo nome. Ele é filho de Marcinho VP, preso atualmente por assassinato, formação de quadrilha e tráfico. O artista, no entanto, é bom que se diga, tem ficha limpa.  A proposta, como sempre, desencadeia uma série de polêmicas,  embora nem seja original, em Salvador, desde 2019, já existe regulamentação similar em pleno vigor.

                   Observando de forma fria , com devido distanciamento, o projeto parece justo e impecável. Não soa justificável que o estado financie  projetos que transitam em clara ilegalidade como as terríveis chagas brasileiras: violência contra a mulher, discriminação, apologia às drogas e ao trabalho infantil e escravo e o racismo. A liberdade de expressão  é ampla, mas não infinita:  tem seus limites justamente entre os parágrafos e incisos da lei. O polêmico mexe com estruturas mais profundas do poder. Ela mira em artistas reconhecidamente periféricos (embora de ampla audiência e reconhecimento na massa)  , a turma do Funk e do Rap. Cheira sempre , pelo histórico brasileiro, a uma discriminação,  tentando eliminar outra. Mais de 86% da população do Rio de Janeiro vive em favelas ou comunidades urbanas. As manifestações de raizes afro/indígena foram eternamente perseguidas no Brasil como o Candomblé, a Macumba,  Capoeira, a Umbanda, as Bandas Cabaçais. São frequentes ainda hoje as vandalizações dos Terreiros. O Funk, o Rap, o Reggae, o Hip-Hop, o Brega são exorcizados como música de selvagens e de bandidos. Basta lembrar a ação intempestiva , em 2019,  da PM de São Paulo que invadiu um Pancadão em Paraisópolis , deixando o rastro de nove adolescentes mortos e sete feridos com gravidade. O evento tinha mais de 5000 pessoas, sendo encurraladas em vielas estreitas e exterminadas como gado no abatedouro. Por outro lado, a preocupação não invade , por exemplo, o Forró de Isopor, voltado mais à Classe Média,  com composições de terrível mal gosto, como aquela da bomba no Cabaré que propiciava a reconstrução, depois, da prostituta ideal, escolhendo pedaço por pedaço das que foram esquartejadas na explosão.

                   Sou totalmente a fazer da proibição do uso de dinheiro público no incentivo de qualquer crime ou incentivo à discriminação. Acredito, no entanto, que já existem leis suficientes regulamentando isso. É necessário  não culpar o revólver pelo crime e, sim, quem puxou o gatilho. Proibir simplesmente parece uma medida inócua. Teria o mesmo efeito do marido queimar o sofá de casa para se vingar da esposa flagrada em adultério com o Ricardão.    Esses ritmos periféricos fazem a música de protesto da atualidade. Envolvem um número expressivo de pessoas, mais de 16 milhões que vivem em favelas Brasil afora. Eles existem como denúncia de uma realidade perversa que atravessa, incólume, os mais de cinco séculos da história  brasileira  pós-Cabral. Quase um terço da população Brasileira vive em extrema  pobreza, coisa de 72 milhões de viventes, seis vezes a cidade de São Paulo.  Sua música é um grito reiterado  da Favela mostrando suas chagas, a ausência do estado nas suas comunidades e o único amparo e seguro que possuem : a Milícia e o Tráfico, seus verdadeiros governantes. Como alguém comentou numa rede social: se quisermos que o povão passe a ouvir Mozart, Tom Jobim e Beethoven  , é preciso fazer que ele, ao abrir a janela, contemple à sua frente uma Viena.

 

Crato, 21/02/25 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

O Pano bege de Anapu

 



 

A freira  católica Dorothy  Stang chegou ao Brasil , no início dos anos 60.  Nascera Ohio nos EUA. Fez-se missionária  em comunidades de vulnerabilidade social no Ceará, no Maranhão e na Paraíba. Em 1982 fixou-se no Pará, na região do Baixo Xingu, numa cidadezinha chamada Anapu, um local conhecido internacionalmente pelos imensos conflitos de terra. Dorothy investiu-se na defesa dos pequenos trabalhadores rurais. Pôs-se a denunciar ao Ibama fazendeiros e grileiros que promoviam desmatamento ilegal na região. No primeiro Governo Lula, com a ministra Marina Silva, houve um aporte significativo nos fiscais que controlavam o desmatamento, redundando em multas frequentes, o que aumentou a revolta dos infratores, a gangue de posseiros.  Desde a Ditadura Militar, a faísca fora acesa:  o Regime  doou terras  com a premissa de que os fazendeiros as tornassem produtivas, o que não aconteceu. Quebrado o trato, o Estado passou a ser mais proativo,  encetando assentamentos e um início de Reforma Agrária o que aumentou ainda mais a tensão. Dorothy terminou assassinada cruelmente,  há exatos vinte anos, por pistoleiros contratados por um cartel de ricos fazendeiros. Um crime hediondo de repercussão internacional.  Lutara bravamente pela preservação da mata e pela distribuição de terra para pequenos produtores. O sucessor de Dorothy, o Pe Amaro Lopes de Souza foi também perseguido, sendo preso por mais de três meses, no governo Bolsonaro. Foi ele que, em 2009, mandou fazer uma pintura na igreja local, em homenagem a Dorothy. O painel representa um Jesus Crucificado em uma árvore, vestido com roupas simples de camponês, pele queimada pelo sol e chapéu de palha. Ao lado Dorothy e uma imagem do Pe. JósimoTavares também assassinado , pelas mesmas razões, no Maranhão em 1986.  Uma lembrança à luta pela Reforma Agrária e à morte de vinte um trabalhadores rurais chacinados pelos latifundiários desde a morte de Dorothy.

                   Nestes dias, para surpresa de todos, o painel foi coberto por uma cortina bege, na igreja, a mando do atual pároco, Josemar Lourenço. Ele é  um ex-investigador da Polícia Civil da Paraíba. Foi indicado, certamente, para fazer um contraponto à igreja progressista anterior. O novo padre   foi visto celebrando missas em casas de fazendeiros ricos,  envolvidos na morte de Dorothy. A freira católica, assim, sofre mais uma tentativa de assassinato, agora por um membro da sua própria igreja.  Mas, entre os doze discípulos, teve Judas, não é ?

                   Esta tentativa de apagamento é um viés repetitivo na História da Humanidade. As narrativas são escritas pelos vencedores e , no teatro da vida, os holofotes são lançados em determinados personagens e enredos, assim como as sombras são escolhidas para outros.  Os arquivos da Inquisição foram surpreendentemente queimados, parte da Documentação da Ditadura Militar de 1964, desapareceu.  Os crimes mais bárbaros são perfeitamente justificados. O pano bege de Anapu é paradigmático. O Pe. Josemar não age por si, mas representa um importante segmento da igreja a qual pertence. Ela , desde que se tornou estado, vive uma eterna dualidade entre o Pastoral e o diplomático. Há alas de sacerdotes que buscam seguir os passos do Cristo, mas o Catolicismo, como estado, é profundamente conservador. Vejam a maior facilidade de beatificação das pessoas vítimas de crimes contra a castidade ou daqueles que foram mártires por conta da sua crença. Os processos andam azeitadamente, a probabilidade de futura santificação aumenta sobremaneira. Da mesma  forma,    os processos eclesiásticos daqueles que defenderam a ferro e fogo as pautas mais conservadoras da Igreja Católica :  João Paulo II,  José Maria Escrivá da Opus Dei, Thomaz de Aquino. Por incrível que possa parecer, os que enveredaram pelos caminhos do Cristianismo mais puro, em defesa dos pobres e oprimidos, dos desvalidos da terra, o caminho é perfeitamente inverso. Os Humilhados não serão exaltados. Don Oscar Romero foi assassinado em 1980, em San Salvador, por defender os pobres, chegou a ser visto como um perigo para a cúpula da Igreja. Pe Henrique, assessor de Dom Hélder, foi chacinado na Ditadura de 1964. Frei Tito suicidou-se em consequência de torturas durante o Golpe Militar. O bsipo da Guatemala, Juan José Gerardi, foi assassinado, em 1998, por denunciar violações  dos Direitos humanos,  por parte do Exército local.  Onde andam seus processos de Beatificação ?  Para esses casos que mexem com a estrutura política do estado Católico, o mais que se consegue é estender um imenso pano bege para esconder a dura realidade. Se Cristo retornasse à Terra, chegando em Anapu, pelos antecedentes do Novo Testamento, ele estaria do lado dos camponeses Sem-Terra ou dos latifundiários? Tirem, por favor, esse pano bege !

 

J Flávio Vieira

Crato, 07/02/25