quarta-feira, 27 de novembro de 2024

A Grande Matozinho

 

               


A recente quebra do sigilo nas investigações da PF sobre a Intentona de Golpe de Estado de 2022 revelou dados estarrecedores , já previsíveis: o Brasil faz parte da Grande Matozinho. Imaginem aí o primitivismo  de altos comandantes das Forças Armadas brasileiras na articulação de uma cisão no estado democrático de direito, projeto digno de um Exército de Brancaleone. E os antecedentes já eram dignos de um episódio do Chaves. Em 2019, o sargento da FAB  Manoel Silva Rodrigues transportou quase quarenta quilos de Cocaína no avião do então chefe do  GSI, General Heleno, da comitiva do então presidente Bolsonaro. Preso pela alfândega espanhola,  descobriu-se, depois, que já era a sétima vez que exercia a atividade de muambeiro da FAB, sem que o nosso Serviço de Informações, comandado por Heleno, tenha desconfiado de nada. O amadorismo reapareceu no ano passado quando o General do Exército Mauro Lorena Cid fotografou a si mesmo junto com o relógio pertencente ao Brasil, açambarcado por Bolsonaro, entregando-se como contrabandista e estelionatário comum para a PF. Naquele período crítico, em que estivemos na iminência de esganar a Democracia,   surgiu  um outro capítulo digno de “Os Trapalhões”. Anderson Silva, que se escafedeu para os EUA  no apagar das luzes do governo anterior, então ministro da justiça, deixou no armário a minuta de um Decreto que permitia a Bolsonaro instaura um Estado de Defesa no TSE, anulando a eleição em que fora derrotado. E a série de trapalhadas não tem fim: a reunião na casa do Ministro Braga Neto , em 12  novembro de 2022, logo depois da derrota, em que combinavam o Golpe de Estado e ( pasmem vocês!) o assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Morais, foi filmada e uma cópia está acoplada ao inquérito da PF, na Operação Contragolpe. Ali Mauro Cid, o Major Rafael de Oliveira e o Ten. Coronel Ferreira Lima entre outros tramavam, a vivas voz e imagens,  o uso da Elite do Exército, chamada de Kids Pretos, na trama do assassinato, a criação de um grupo de WhatsApp chamado de Copa 2022,  e uma vaquinha de R$ 100.000, para custear as despesas logísticas da Intentona. Resta saber se a grana saiu dos cofres públicos. Dados do grupo foram também acessados facilmente pela PF, com conversas transcritas. Os Kids Pretos estiveram junto dos atos de vandalismo do 08 de Janeiro e assessoraram os grupos que se reuniam defronte dos quartéis.  Eles , inclusive, segundo a PF, estiveram prestes a executar Alexandre de Morais, não o fizeram por conta de a reunião do STF ter terminado mais cedo do que o esperado. Rafael deixou rastros nos seus deslocamentos, uma digital numa CNH e a PF tem a gravação de toda a operação e a combinação pelos celulares. A SWAT brasileira trabalhou como um reles vigia de meio de rua. O plano para executar Lula e Alckmin passava pelo uso de venenos que seriam colocados em bebidas ou alimentos. Claro que, na cabeça deles, a execução das três autoridades mais importantes do país, a um só tempo, não causaria nenhuma desconfiança e nenhuma repercussão internacional.  Nos mais diversos passos  do inquérito está a impressão digital do Palácio do Planalto à época.  Em todos os casos, vejam vocês, envolveram-se  as patentes mais graduadas das Forças Armadas, donde se conclui  que estamos prontos para ensinar técnicas de espionagem ao Mossad e enfrentar, em campo de batalha, o Exército da China.  E o FEBEAFÁ ( Festival de Besteiras que assola as Forças Armadas) está só começando, esperem as cenas dos próximos capítulos quando todo o dramalhão sair do sigilo !

                   A Extrema Direita vive esculachando as Ditaduras da Venezuela e da Nicarágua, mas não tem nenhum pejo em propor uma Ditadura Militar à brasileira, inclusive com o assassinato do presidente do TSE, dos presidente e vice eleitos no Brasil por voto popular. Louve-se a Aeronáutica e o Exército que ao menos demonstraram um pouco de juízo. A mesma turma que vive propondo a Pena de Morte no país e a diminuição da maioridade penal, a proibição de saídas temporárias de presos  das cadeias,  entra com projeto para anistiar os malfeitores antidemocráticos e que não se tornaram assassinos por mera incompetência. Falam em pacificação os que agiram com ódio, rancor, que queriam instalar um Estado de exceção cuja lei seria ditada por eles mesmos, com a receita que já conhecemos: Ditadura, Morte, prisão sem processo legal. Inocentar os criminosos de hoje é apenas chocar o ovo da serpente que irá eclodir logo amanhã. Que se faça a justiça, conforme prevê a Constituição, com ampla possibilidade de defesa (aquela mesma que as ditaduras não sabem do que se trata). Cadeia para os que atentaram contra o maior bem  e dádiva que tem uma nação: A Democracia. E paira em todos nós a pergunta que não se aquieta. Pagos regiamente com nosso dinheiro para que serve mesmo essa tropa, além de usar as armas e a munição que lhes damos para atirar contra nós mesmos ?

 

Crato, 23/11/24

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Marquises

 


J. Flávio Vieira

 

                --- Vocês não sabem do absurdo ! Rauzito foi recolhido à Fundação Casa, hoje ! Foi pego no sinal cheirando cola ! Pode ?

 

                        A notícia se alastrou como faísca correndo no estopim .  Um menino de oito anos, já viciado em drogas ? Onde vamos parar ? Rauzito   era conhecido de muita gente. Franzino, portando sempre uma camiseta puída de lycra e uma bermuda de longa vida, invariavelmente suja,   fazia ponto em um dos sinais da pomposa rua Abelardo Studart, vendendo balas, limpando para-brisas --entre o vermelho e o verde—e  pastorando carros estacionados ao longo da via. Tinha por casa uma marquise de uma loja de departamentos próxima dali. Era tido como um marajá da via pública. Para os colegas de rua, tinha a casa mais suntuosa  do centro comercial da cidade. Defendia seu espaço, com unhas e dentes, como se tivesse conseguido o direito por usucapião. A reação de surpresa do povo, por incrível que possa parecer, foi pelo vício precoce de Rauzito e não pelo outro absurdo que já se tornara normalidade: uma criança de oito anos ter por lar a via pública. Antes,  a população já se indignara quando Rauzito , defendendo seu território, a sombra da marquise, agredira um outro guri que  se fez de posseiro, sem imaginar que já lhe pertencia. Quem vive na cidade não entende das leis da selva!  E agora o povo parecia boquiaberto com a descoberta de que já na infância o vício estava se alastrando.

                        D. Veridiana, uma coquete da vila, chacoalhando suas joias, pediu donativos, num clube de serviço,  para a Infância Abandonada da cidade: A Caridade é o Caminho para o céu ! O Padre Gilbertino, na homilia daquele domingo, explicou que o vício era a presença do demônio no seio da sociedade e pregou um reforço nos óbolos para ajudar a infância desvalida. O prefeito Sinderval Codó, em entrevista na Rádio  “A Voz da Bíblia” , informou ter colocado toda a Secretaria de Ação Social  na investigação das causas daquele crime e a polícia já abrira inquérito para descobrir os responsáveis pela distribuição da droga nas ruas. Cacildo Honório, “A Voz de Ouro do Rádio”, no Programa “ Ronda Policial” , pediu providências urgentes da polícia na repressão ao tráfico de drogas no município que se tornara uma calamidade. Onildo Jurema, o presidente do Partido Comunista Operário Obreiro, o PCOO, que faz oposição ao atual governante, propôs a deposição imediata do prefeito que, segundo ele, era o proprietário do Jogo do Bicho local e sócio da Facção que comandava o tráfico na região. Em meio à indignação geral de superfície, as múltiplas propostas de solução do caso Rauzito, uma pergunta permaneceu no ar, perfeitamente intocada, procurando uma resposta, assim como os meninos moradores de vias públicas procuravam o Estado: Por que Rauzito , de oito anos, sem pais e sem país, tem por casa uma marquise ?

                        Na Fundação Casa , Rauzito chega agitado, confuso. Menos por não entender o motivo da sua detenção do que pelo medo de perder, para os outros zumbis que invadem a rua, a única propriedade que possui por usucapião: a marquise. Alimentado, dorme à noite numa cama mais confortável do que a sua, mas, ansioso,  sabe que não lhe pertence. Encontra-se com uma tropa de iguais abandonados,  aqueles que nunca tiveram infância, apenas a luta pela sobrevivência: um monstro a cada dia, um fantasma em cada esquina. Apesar de tudo, a desgraça comum lhe traz algum conforto, talvez por ser o único socialismo que conhece: o da miséria. No dia seguinte, a Assistente Social o entrevista junto com a psicóloga.

                        --- Rauzito, por que você decidiu morar na rua ? Você não tinha pai e mãe ?

                        --- Meu pai nunca conheci. Mamãe disse que era o patrão dela na casa em que ela trabalhava, mas era casado e nunca assumiu. Conheci só meu padrasto que batia e abusava de mim desde eu bem pequenininho.

                        --- E foi por isso que você fugiu de casa e foi para a rua ?

                        --- Não, a polícia , antes de mim, matou meu padrasto. Ele era descuidista. Um dia se descuidou. Fui para a rua quando minha mãe morreu. Era viciada na “pedra” e, um dia, fumou mais do que devia.

                        --- E por que você começou a cheirar cola, para anestesiar e aguentar a viver na rua ?

                        --- Não, porque só quando cheiro a latinha de cola é quando eu consigo ver e conversar com minha mãe...

                        A  Psicologia e a Assistência Social viram-se, de repente, diante do sinal vermelho. Tinham há pouco tornado Rauzito, novamente, um sem teto e , agora, lhes pairava aquela sensação de que haviam matado sua mãe por uma segunda vez. Era justo arrancar-lhe das mãos a latinha que , ao menos, lhe proporcionava o bálsamo do sonho, sem que lhe ofertassem , em troca, um mundo mais justo e respirável ?  

 

J. Flávio Vieira

Crato, 08/11/24

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Marcas na areia sob a chuva

 

                                      


                                                                                                J. Flávio Vieira

 

                               Bem para lá “del mezzo del cammin de nostra vita” , no dizer de Dante, pomo-nos a olhar para trás observando a longa estrada percorrida até aqui. Há mais caminho às nossas costas do que à nossa frente. Batemos a poeira do longo percurso e, tantas vezes, caímos nas armadilhas do condicional. E se tivéssemos escolhido outras veredas ? Se naquele diz não  frequentasse aquela balada onde conheci a Lurdinha ? E se houvesse optado por outra profissão, não seria mais próspero ? A cada instante víamo-nos diante de veredas  e bifurcações na trajetória e presisamos que escolher que direção tomar. Aquela terá sido a melhor decisão?   Encontraríamos menos abismos e pedregulhos e lobos   se , como Chapeuzinho , tivéssemos preferido o caminho da floresta ao invés do que margeia o rio ?

                   Aqui, ali  foram-nos oferecidas alternativas e ofertadas, a seguir,  as consequências das nossas escolhas. Diferentemente das trilhas que seguimos pelos bosques, a da vida tem mão única. O sentido é um só e, à frente – sem que se saiba em que curva do trajeto—há um abismo sempre a nos esperar.  A visão pelo retrovisor, apesar de atraente e inevitável, é sempre inócua. Não há possibilidade de manobra e retorno. Não deveríamos lamentar escolhas pretéritas, aparentemente desacertadas sob as lentes do hoje. It´s My Way, como cantaria Sinatra. Sempre o mais grave não é a vereda errada que selecionamos, mas, principalmente, a curtição insuficiente do percurso, por mais íngreme e acidentado que ele seja.  O verbo viver só se conjuga no Presente do Indicativo, nunca no Passado ou no Futuro, nem no Imperativo ou Subjuntivo.

                   Numa curva à frente – sabe-se lá onde –  o  fojo  já nos espreita. Quando despencarmos, no último voo do Ícaro, talvez nos passe pelos olhos o filme da viagem de um a outro precipício. Que resquícios ficarão, pelas margens sinuosas da trilha, da nossa passagem ?  Pegadas, detritos,  entulhos, marcas em troncos de árvores ? Alguns avisos e sinais que lembrem aos outros viandantes, que nos seguem logo atrás, dos perigos e acidentes espalhados pelas vielas ?  Ou o legado do silêncio e a leveza do colibri ou da luz que trespassa a superfície das águas deixando-a incólume e intocada ?  O certo é que nossa viagem será  única, irretornável  e solitária. Tentaremos deixar marcas da nossa passagem pelas margens da estrada, mas serão apagadas irremediavelmente com as primeiras chuvas de verão. E, no voo final que nos espera, no pélago adiante, a única mala permitida será guardada no bagageiro do  coração e não poderá ser resgatada na esteira do aeroporto.

 

Crato, 19/10/24