
Duas sensações díspares tomaram conta de Giba quando
envergou, por fim, a aposentadoria, meio precoce. Entrara num Banco público, como escriturário, numa época em que bancário tinha alto status e gozava de salário
diferenciado, carreira sólida e futuro garantido. A escolha profissional fugiu,
de longe, como frequentemente acontece aos descamisados, a uma pretensa vocação
de berço. Nascido pobre , no interior, sem possibilidades outras de seguir nos
estudos, aquela se mostrou sua tábua de salvação. Toda aquela estabilidade , com dinheiro farto e regular, tornava
o emprego muito atrativo e os bancários grandes partidos para as mocinhas
casadoiras nas pequenas localidades onde, em geral, iniciavam a vida. Além de
tudo, imersos no sistema financeiro, sempre aparentavam , para os que estavam
de fora, que aquela montanha de dinheiro
dormente nos cofres , não pertencia à instituição, mas a eles que, todo santo
dia, folheavam notas e mais notas e as organizavam em montinhos atrelados a
ligas elásticas. Giba até contava, sorrindo, que ainda menino sua mãe o levara
a uma cigana que lhe fez um vaticínio mais que alentador:
-- Esse
menino vai passar a vida toda pegando em muito dinheiro, dona Sinhá !
A
previsão se confirmou, anos depois, claro que sem as perspectivas alvissareiras
que alimentaram sua infância e adolescência: virou Caixa de Banco. Tinha as mãos cheias aquele dilúvio de notas
que alguns associam, imediatamente à felicidade. Só havia um pequeno detalhe
que lhe escapara do vaticínio original: não eram suas. Mas confortava-se com a
certeza de que uma pequenina parcela, no finalzinho do mês, terminaria por
molhar a sua conta. Casou cedo, com D. Hermelinda , a filha de um fazendeiro
remediado de Campos Sales, onde assumiu, no verdor dos vinte anos, a função num
Banco daquela cidade. Depois, ao sabor das ondas meio messiânicas do ofício,
circulou por muitas outras cidades, levando a tiracolo D. Hermelinda, uma
exemplar e irretocável gerente de uma empresa de dificílima administração
chamada de Lar. E os filhos foram vindo, em carreirinha, cada um com uma
nacionalidade diferente : Petrolina, Curaçá, Macaé e, o fim de rama,
Cristênio ( nome e karma pomposo e heráldico que herdou do avô paterno) veio a
furo em Maceió, a última parada do seu trem. Quando, por fim, Giba pendurou as
chuteiras, o menino tinha lá seus doze anos e já apresentava os primeiros
sinais da mordida de cachorro doido da idade: Papai é quadrado! Mamãe só gosta
das minhas irmãs ! Não tenho que dar satisfação a quem quer que seja ! Ninguém
me entende nessa casa !
Conversa vai, conversa vem, terminamos por nos afastar do
preâmbulo dessa história. Pois bem ! Dois sentimentos díspares caíram como um raio
no toitiço de Giba quando, por fim, foi avisado, pelo Setor de Pessoal, da sua
aposentadoria. Tinha , então, cinquenta e cinco anos. Bateu-lhe uma sensação imediata
de alívio e da liberdade por fim conquistada. Como se tivesse pago uma pena de
trinta e cinco anos e , naquele instante, lhe aviassem o Alvará de Soltura. Nos primeiros dias,
tomou-lhe aquela alegria de já não necessitar levantar às cinco da matina e
partir, às carreiras, para o Banco,
amestrado pelo Relógio de Ponto. A cara de mandacaru do chefe do setor, também,
aos poucos, foi desaparecendo da
paisagem. Por uns meses Giba sentiu-se
no melhor dos mundos. Aos poucos, no entanto, lhe foi assaltando o espírito um
certo dissabor. Até dizem que o tempero da vida é agridoce ! A evolução do Homo
eructus para o Homo laboris não pareceu ter lhe trazido maiores sobressaltos. A
chegado, no entanto, ao Homo domesticus começou a lhe pesar. Não entendia nada
de casa, era-lhe um ofício totalmente estranho e, como todos os outros,
repletos dos seus próprios mistérios. Onde tentou ajudar, apenas atrapalhou os
afazeres de D. Hermelinda que já adquirira a desenvoltura do voo em cruzeiro.
Despencou-lhe , rápido, um certo banzo, voltou a fumar, precisou sair de casa
para encontrar com outros soldados igualmente
reformados que preenchiam o vazio do copo da aposentadoria com
destilados e conversa solta. As duas filhas já tinham casado e , assoberbadas,
também, pela montanha russa da vida, apareciam meteoricamente nos natais,
aniversários e nas doenças. Teve que dividir o bolo da solidão com a esposa e
com Cristênio que já começara a trabalhar, espelhando-se no pai, num Banco
privado. Depois de uns cinco anos de porteiras abertas, a carroça de Giba começou a emperrar as válvulas, empenou o
vilabrequim e teve que passar pela Retífica. Entendeu, rápido, que quase fizera
o desejo soberbo da Previdência Social: deixar de receber a aposentadoria para
a qual fizera poupança por quase quatro décadas e que o governo devolvia como
se fosse um favor que lhe estivesse fazendo.
Cristênio
, sentindo-se estribado com o salário do Banco, sem gastos maiores, virou uma
cadela no cio. Vezes não dormia em casa, nos finais de semana
desaparecia, no Carnaval só tirava a fantasia na quarta-feira de cinzas.
Voltava com aquela cara de gato que passou a noite toda aos berros no telhado
de casa. Quando dava sinais de que iria
desaparecer por mais tempo, a justificativa era sempre a mesma:
---
Pai, não se preocupe não, vou sair e não sei se venho dormir em casa...
---
Com quem meu filho ? --- Sempre perguntava, algo aflita, uma desvelada Hermelinda .
---
Com o pessoal, mãe. Com o Pessoal ...
Depois
de alguns meses, Cristênio avisou que resolvera , agora, morar em um outro
bairro , em Chã de Bebedouro. Já estava crescido e queria a independência. Os
pais , desta feita, ficaram mais preocupados. Moraria só ? Em que endereço ?
Cristênio não encompridou conversa.
---
Pai, depois digo direitinho o endereço. Não se preocupem ! Vou morar com o
Pessoal...
Passaram-se
alguns meses, ele telefonava eventualmente para saber se estava tudo bem... Mas
dava uma queda de asa danada quando os velhos pediam o novo endereço. Numa das
conferência no Bar da Esquina, Giba, através
de um amigo do Banco, soube que o filho
estava, na verdade, morando com a
namorada que, por coincidência, era filha de um outro bancário. E mais: Giba
descobriu que ia ser avô. Ao chegar em casa , ele contou a novidade a uma
Hermelinda meio chorosa e revoltada. A estrada da vida, no entanto, trouxera não
só a artrite e os cabelos brancos , mas também experiência. E foi assim que
Giba profetizou:
---
Nada aconteceu de mais, Hermé ! Nada ! Fique tranquila ! Daqui um pouco o
Pessoal vem morar bem pertinho daqui !
Nem
a cigana da infância dele, teria tanto faro. Depois de uns três meses que a
neta nasceu, Cristênio chegou em casa, sorridente e feliz e deu a boa notícia:
Eles agora tinham uma neta e, o melhor de tudo, iam se mudar para um
apartamento no mesmo prédio. Giba matou rápido a charada. Com os dois
trabalhando, com salários de bancários agora dessalariados, o ponto de apoio
dos avós era imprescindível, para os cuidados com o Pessoal. Todo santo dia,
antes de partirem para a luta, Cristênio e a esposa deixavam o Pessoal com os
avós. Giba , carinhosamente, sem que o filho nunca compreendesse, passou a
chamar a menininha, a querida Pessoal, de Pepê.
Com
os dias, aquilo que a princípio era um fardo, começou a encher de alegria a
casa meio opaca dos avós. Pepê com sua graça e as surpresas quase que diárias
no descobrimento do mundo à sua volta, transformou o Saara nos Jardins
Suspensos da Babilônia. E Pepê ficou ainda
mais próxima quando, um ano depois, Cristênio e a esposa resolveram apartar os
teréns. As novas gerações, pensou Hermelinda, entendem que o casamento é um
eterno banquete de frutos do mar, vinhos e sobremesa de pudim de leite. Quando
aparecem os primeiros sapos a degustar, resolvem imediatamente trocar de
restaurante. Cristênio voltou para casa dos pais e , no acordo do divórcio, para
satisfação dos avós, ficou com a guarda de Pepê.
Aos
poucos, Cristênio colocou a espingarda soca-soca nas costas e partiu novamente
para caça. Giba e Hermelinda começaram a notar a repetição da mesma trilha
sonora. Desaparecia nos finais de semanas e feriados.
---
Mãe , vou acampar nesse final de semana e só volto na segunda. Vocês cuidam de
Pepê ?
--- Cuidamos, filho ! Vai acampar
com quem ?
---
Com a Turma, mãe ! Com a Turma !
Alguns
meses depois, Cristênio avisou, novamente que iria se mudar para morar no
Bairro de Santa Amélia ! Quis saber se eles poderiam cuidar por um tempo de
Pepê que, nesse momento, já era, de longe, a figura mais importante da casa.
Claro que podiam !
---
Filho, podemos sim, mas dê notícia ! Pepê tem todo nosso amor mas ninguém
substitui pai e mãe ! Vai morar com quem ?
---
Vou morar com a Turma , mãe ! Não se preocupe ! Eu dou notícia !
Alguns
meses depois, Giba soube, na ágora moderna, o Bar da Esquina, que o filho estava atrás de alugar apartamento
nos proximidades dali, de preferência no mesmo prédio dos pais. No dia seguinte, Hermelinda
deu com o marido mostrando um quarto do apartamento que pretendia reformar a um mestre
de obras que costumava fazer trabalhos para eles. Ela então quis saber que
reforma era aquela de que não via qualquer necessidade, ainda mais levantando
poeira para Pepê que era muito alérgica. Um Giba profético, nostradâmico,
explicou tudo:
---
Filha, chamei o pedreiro para a gente ajeitar esse quarto pra Tutu !
Crato, 18/03/22