quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Reinos de pó



Ricardo III ,da Inglaterra, reinou por um período curtíssimo : entre 1483 e 1485. Sua enviesada ascensão à coroa , historicamente, parece eivada de crimes e assassinatos, o que sempre foi comum nas monarquias absolutistas. Para chegar ao trono, na sucessão de Henrique IV que morrera subitamente, Ricardo precisou dizimar inimigos  e, também, candidatos naturais ao cargo, além de utilizar de manobras jurídicas e armações como a anulação do casamento do seu antecessor por suposta bigamia.  Coroado , Ricardo levou Ricardo V e o Duque de York , seus sobrinhos, à Torre de Londres de onde nunca mais voltaram. Mexendo no instável castelo de cartas dos interesses da aristocracia inglesa, rapidamente, se iniciou uma enorme campanha contra o rei, sob suspeita de usurpação do trono  e que culminou com a Guerra das Rosas , encabeçada pelo Duque de Buckingham e Henrique Tudor , o Conde de Richmond. Em agosto de 1485, as tropas leais ao rei e as revolucionárias do Conde se confrontam na Batalha de Bosworth Field e Ricardo III termina abatido no confronto; dando-se início à Dinastia de Tudor. Apesar do reinado meteórico, ele se tornou , por sua dúbia personalidade, um dos monarcas mais populares do Reino Unido, tendo sido, inclusive, tema de uma das mais importantes peças de Shakespeare. Além de tudo, aumentando a aura de mistério, seu corpo jamais tinha sido encontrado. Ficou célebre o epílogo shakespeareano em que Ricardo III , a pé, sendo perseguido pela sanha do exército adversário, cita, no desespero,  a famosa frase : “Meu Reino por um Cavalo !”
                   No último dia quatro de fevereiro, quinhentos e vinte e oito anos depois da fatídica batalha, escavações num estacionamento em Leicester, no centro da Inglaterra, encontraram um esqueleto que, depois, se confirmou pertencer a Ricardo III. Tinha 32 anos na época da morte, uma profunda escoliose , sinais de trauma craniano por objeto cortante  e uma ponta de flecha entre as vértebras. Exames científicos como Datação pelo Carbono 14 e DNA confirmaram o fim do mistério que já varava meio milênio.
                   Ricardo III estava inumado num simples estacionamento e seu esqueleto não carregava quaisquer diferenças que por acaso o distinguissem de qualquer um dos   mais humildes plebeus do seu reino.  A confirmação da sua identidade , pelo exame de DNA, foi através da comparação com um dos seus últimos descendentes : Michel Ibsen, um marceneiro canadense, radicado em Londres e que não carrega consigo nenhum traço de  nobreza esperado  para um remanescente da Casa de York. O pretenso sangue azul que por acaso teria corrido nas suas veias, também, não tingiu a ossada encontrada, nem a tornou mais colorida e menos opaca do que os remanescentes de qualquer mendigo da Inglaterra. Na morte não há castas: é de pó que são construídas todas as coisas. Vaidade, riqueza, poder , ambição, egoísmo acabam todos no fim da batalha, quando o golpe de misericórdia já está armado e nós trocaríamos todas elas por um  cavalo que nos levasse para bem longe do equitativo  reino do nada, da escuridão e do pó.

21/02/13

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Entala-Gato



“Como é possível esperar que a humanidade ouça                                                               conselhos,se nem sequer ouve as advertências.”
Jonathan Swift
                        No último Carnaval, enquanto foliões, no Brasil inteiro, entregavam-se às batalhas de confetes e serpentinas, aconteceu, no Espírito Santo, uma cena emblemática dos anos em que vivemos. A aposentada Judith Kosken ,de setenta e nove anos ,  foi trancada ,pela neta, dentro de sua casa e mantida, em cárcere privado, sem alimentos, até a quarta-feira de cinzas. Vizinhos ouviram os gritos desesperados da velhinha, avisaram à polícia e ela, por fim, foi libertada da prisão domiciliar. A neta saíra com a namorada na sexta-feira para curtir o Carnaval em outra cidade. As agruras de D. Judith não pararam por aí : atendida em um hospital, passou mais dois dias morando no carro da polícia, pois os agentes, simplesmente, não conseguiam encontrar uma instituição que a acolhesse. O fato pode parecer um caso isolado, destes que periodicamente servem para alimentar o noticiário morno dos jornais. Esconde no seu ventre, no entanto, um monstro que vem sendo gestado nas últimas décadas e está pronto a coroar e espalhar brasa Brasil afora.
                   No início do Século XX, apenas 25% da população brasileira tinha mais de 60 anos. Nos primórdios do Século XXI , 65 % dos homens e 78% das mulheres alcançaram este patamar. Em 2009 ,o Brasil, que é um país jovem, tinha a sexta população de idosos do mundo, alguma coisa em torno de 22 milhões de pessoas, ou seja: um em cada 13 brasileiros será idoso em 2020 e ,em 2040,  um terço da população estará nesta faixa etária. A esperança de vida do brasileiro, hoje, beira os 75 anos, em média;  na década de oitenta,  era de 63 anos. Junte-se a este quadro,  uma diminuição abrupta da taxa de fertilidade, que pelo andar da carruagem deverá levar ao decréscimo progressivo da população  a partir de 2062 e perceberemos que o futuro do Brasil é o passado. A grande bomba começa a ficar com o estopim aceso e curto. O país não está minimamente preparado para acolher a crescente população de idosos. Quem haverá de cuidar deles quando vierem as limitações próprias dos anos ? Não temos geriatras suficientes; não dispomos de  cuidadores treinados no volume que a demanda exige; não possuímos instituições que os acolham. O antigo pacto de gerações, em que os pais cuidavam dos filhos e estes dos pais, quebrou-se por inteiro: os filhos são poucos e a modernidade exige demais deles. Nosso Sistema de Saúde também não está capacitado para atender as doenças próprias da maturidade: as demências, as fraturas, os acidentes vasculares cerebrais, o câncer que tende a aumentar nas faixas etárias mais elevadas. Não bastasse isso, vivendo mais a população, o INSS deverá desembolsar as aposentadorias por mais tempo e, por outro lado, nascendo poucos brasileiros,  a previdência arrecada menos e o desequilíbrio da balança é inevitável. Nas gerações passadas,  a família cuidava dos anciãos e os abrigos eram deixados para os indigentes. Hoje, nem mel, nem cabaça !
                   As angústias porque passou D. Judith no Carnaval são freqüentes em todo o Brasil e tenderão a se agravar. Não é muito diferente do que vem acontecendo no resto do mundo, só que nos países desenvolvidos as mudanças foram mais paulatinas e houve mais tempo para   adaptação à nova realidade. Um dado positivo nesta nova cara da população brasileira é que os idosos estão muito mais ativos, organizam-se, viajam, produzem e muitos e muitos são arrimo de família, geralmente com renda média superior aos chefes de família mais jovens. O Brasil precisa, no entanto, enfrentar rapidamente esta nova face mais enrugada que o país vai tomando, sob pena de aprofundarem-se enormemente seus problemas sociais que já não são poucos.
                            O escritor irlandês e  setecentista , Jonathan Swift (1667-1745) escreveu uma sátira em 1729 : “Uma modesta proposta para preven ir que, na Irlanda, as crianças dos pobres sejam um fardo para os pais ou para o país, e para as tornar benéficas para a República”. Nela propõe, como solução da pobreza infantil, que havendo provas de que a carne das crianças  é tenra e gostosa, elas possam ser vendidas assadas aos ricos, resolvendo assim o problema culinário dos mais abastados, econômicos dos mais pobres e o impasse político da Nação que já não suporta carregar tantos rebentos produzidos pelos mais desfavorecidos. Pois bem, se o Brasil não deseja enfrentar o outro extremo da questão que é a proliferação dos idosos e seus achaques, visto-me de Swift e trago também uma modesta proposta. Chegando à idade avançada, quando começarem a trazer mais problemas que soluções, os idosos poderiam ser levados a uma instituição e submetidos à eutanásia. Sua carne, já pouco tenra, poderia ser tratada como carne de sol ou de charque  e depois, juntada à farinha e produzida uma paçoca. Esta iguaria seria servida aos favelados e aos pobres nordestinos vítimas da seca. Assim resolveríamos muitos impasses: primeiro, diminuiríamos a população idosa e seu fardo à sociedade; depois, somaríamos o nada na escala social ao nada na escala etária e desta soma poderia resultar algum total; depois, unindo a carne dos velhos à farinha, havendo qualquer indigestão , o governo poderia botar a culpa na farinha; além de tudo, estaríamos contribuindo para melhorar a fome do Nordeste o que tem sido sempre uma enorme preocupação para os estados do Sul e Sudeste.  De minha parte, ofereço minha fuçura, daqui mais uns poucos anos, a quem interessar possa, mesmo sabendo que a carne já é de terceira, mas, quem sabe,  misturada com uma farinhazinha de mandioca , acredito que ainda dá um bom entala-gato.

18/02/13