sábado, 30 de abril de 2011

Tarrabufado em 2740 KHz

Em fins de 1973, o prefeito Sindé Bandeira enviou uma convocação urgente ao locutor Juju Gurgumilho de Veludo: queria vê-lo na prefeitura com máxima brevidade. Só para lembrar: o nosso Juju presidia a gloriosa Rádio Paranaporã de 2740 KHz sempre, segundo seu slogan , “ falando de Matozinho para até adonde Judas perdeu as botinas”. Nosso jornalista começara a vida como camelô, dali pulara para uma profissão bem mais nobre : animador de comício. Do palanque, infuluiu-se , sob a proteção de Sindé, para uma amplificadora na Praça da Matriz que terminou servindo de embrião para o primeiro veículo de imprensa de massa da pequena vilazinha. Primeiro e único, naqueles anos 70. A concessão da Paranaporã viera sob influência política de Sindé Bandeira e fizera-se uma Rádio chapa branca desde seu nascedouro. Juju era um mero testa de ferro do prefeito. O samango Gurgumilho, assim, recebeu a convocação como uma ordem e, de pronto, compareceu a presença do seu general.

Sindé , rápido, explicou a Juju sua preocupação. A Rádio precisava se antenar com o mundo. Não podia ficar apenas transmitindo as missas de domingo, as sessões da Câmara, as partidas de futebol entre Matozinho, Bertioga e Serrinha dos Nicodemos. A rádio não fazia jus ao seu lema : “Paranaporã AM 2740 : Um tarrabufado de audiência “. Havia um esporte que agora estava em voga: o automobilismo. Fittipaldi havia sido campeão mundial de Fórmula 1 em 1972 e tudo indicava tinha enorme chance de vencer novamente em 1974. Dali a uns dois meses haveria o Grande Prêmio Brasil e Sindé foi direto : queria que a Paranaporã transmitisse a corrida direto de São Paulo e com exclusividade para toda a região. Tinha um parente trabalhando na Rádio Gazeta paulista e que lhe prometera dar a logística mínima necessária à histórica transmissão. Juju fingiu entender do assunto e prometeu reunir os integrantes da “Rasga Goela”, sua equipe de jornalismo. Traria, depois, uma proposta para aquele feito que iria colocar, definitivamente, a Paranaporã como o mais importante veículo de mídia em todo interior do estado.

O entusiasmo de Juju começou a arrefecer já na porta do gabinete. A proposta de Sindé era mudança demais para a carroçazinha da Paranaporã. As atividades extramuros da rádio nunca se tinham afastado além dos municípios vizinhos. E mais, ninguém por ali presenciara uma corrida de carros, até porque todos existentes em Matozinho, naqueles tempos, não eram suficientes para preencher nem um grid de largada.Quem diabos lá tinha cacife para transmitir um troço daqueles? Não bastasse isso, ninguém da equipe havia ido sequer para a capital, quanto mais para São Paulo: aquela terra engolideira de gente. Pelo sim, pelo não, Gurgumilho reuniu sua equipe e expôs, ponto por ponto, a ordem que havia recebido do prefeito. Todo mundo refugou: ninguém entendia de corrida , São Paulo era uma selva e todos foram enfáticos : preferiam a demissão a se meter numa enrascada daquele tamanho.

Juju concordava com as aflições gerais, mas não podia levar uma resposta negativa ao dono do pedaço. Lembrou-se, então, de Garibaldo Jurubeba . Ele vivia transmitindo umas corridas de cavalos na redondeza, era locutor de vaquejada em Bertioga , marcador de quadrilhas e chamador oficial de bingos nas quermesses. Vivia atanazando Juju: seu sonho era trabalhar na Paranaporã. Além do mais morara por muitos anos em São Paulo, trabalhando no Brás, como vendedor ambulante, até retornar a Matozinho. Garibaldo apresentava-se como a única salvação de Gurgumilho.

Juju procurou-o e largou a lábia. O homem, no entanto, era liso como muçum , aprendera na selva urbana as técnicas de negociação. Deu uma de Cid Moreira, fez-se difícil e desinteressado. Esticou o mais que pôde as propostas do presidente. Só acedeu quando ficou garantido : seria, na volta, contratado, teria um programa de rádio só seu e passaria a ser diretor de todas as transmissões externas da Paranaporã a partir dali. Juju voltou meio chateado, mas, respirando com mais facilidade, procurou o prefeito e informou que tudo havia se resolvido. O Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1 de 1974 seria transmitido diretamente de Interlagos pela Paranaporã , por “Gari Jurubeba : um balde de informação”.

No início de janeiro, Jurubeba embarcou na Sopa de Seu Duzentos , em busca de São Paulo. Levava todo o equipamento necessário para transmissão. Toda Matozinho estava presente na hora da saída e toda equipe da Paranaporã perfilou-se na praça para assistir à sua partida. Sindé pronunciou um discurso histórico de uma Matozinho antenada com o mundo e com os novos rumos da globalização. Chegando a São Paulo, Garibaldo procurou a casa de uns parentes e se aboletou com eles lá pras bandas de São Miguel Paulista. Entrou ainda em contato com parente de Sindé ,funcionário da Rádio Gazeta , que, na verdade, não negou fogo. Deu-lhe todo o material necessário para ele se ir inteirando da missão. Levou nosso locutor ainda em Interlagos para o cabra tomar pé do que encontraria pela frente. Só aí Jurubeba começou a entender o tamanho do pepino que comprara de Juju. E gelou . Entendeu logo que os nomes dos pilotos eram difíceis, tudo das estranja: Fittipaldi, Clay Regazzoni, Jody Scheckter, Niki Lauda, Ronnie Petterson. Era preciso traduzir aquilo tudo para a língua de Matozinho, se não ninguém entendia.

No dia 27 de Janeiro, cedinho, além de tudo chovendo, com a imprescindível ajuda da Gazeta, Gari se arrumou na cabine de imprensa e começou a transmissão, já com as notícias prévias. Todos os rádios de Matozinho se ligavam na transmissão histórica.

--- “Bom dia, mas muito bom dia mesmo, amigos de Matozinho, do Brasil e do Mundo! Aqui é Gari Jurubeba,montado nas ondas médias da sua Paranaporã, trazendo um balde de informações sobre o Grande Prêmio Brasil de corrida de carros, diretamente de São Paulo. Aqui tá um frio de matar sapo, parece em junho no alto da Serra da Jurumenha! Daqui a pouco vai começar a corrida e os corredores que têm mais chances de ganhar, são Emérson Fio do Padre, Clailton Vive na Zona, Josi da Xereca, Nico de Laura e Romildo Pé no Terço”.

Depois disso, Gari passou a encher lingüiça esperando o começo da corrida. Falou dos patrocinadores, agradeceu à Rádio Gazeta e lembrou que aquele feito só tinha sido possível por conta da atuação do grande prefeito Sindé Bandeira. Armado o GRID de largada, Gari percebeu a dificuldade que teria pela frente. De longe, de capacete, só aqueles pitoquinhos metidos dentro de carro preto, branco, verde, amarelo. Com chuva a visibilidade era ainda mais prejudicada. Enquanto os carros estavam estáticos, Gari com a lista na mão ainda deu uma de entendido. Dada a largada no entanto, misturou-se tudo, em meio à chuva e à velocidade. E a transmissão de Gari Jurubeba foi mais ou menos essa por duas horas seguidas:

---- Lai vem.... vruuummmm.... lai vai...... vrummmmm... Lai vem... vrummmmmmmmmmmm.... Lai vai...... vrummmmmmmm..... Tão anexo.....Vrummmmmm........ deu cangapé............vrummmmmmmmmmmm...... lai vem.......... vrummmmmmmmm... lai vai............. vrummmmmmmmmmm.... o amarelo.... vrummmmm...... o preto........ lai vem.... lai vai..... vrummmmmmmmm...

Quando terminou tudo, na bandeirada final, já exausto, Gari tomou novamente conta da situação.

---- É do Brasil ! Quem ganhou foi nosso Emérson Fio do Padre! E só podia ganhar mesmo, meu povo, ou bicho prá ter sorte é o tal do fi de padre !

De volta a Matozinho, nosso Gari foi recebido com festa pela gloriosa Banda Municipal. A cidade estava felicíssima com o momento histórico que vivenciava. Na praça, a população toda reunida esperando o retorno do jornalista, fogos riscando nos céus. De repente, a sopa de Duzentos aponta na rua trazendo o herói da raça : Gari Jurubeba. Vendo o ônibus aproximar-se um moleque grita da janela de casa:

---- Lai vem....

O povo até que se agüentou, mas quando a sopa passou, com um Jurubeba de dentes à mostra na janela, o moleque gritou para gargalhada geral:

---- Lai vai.... Vrummmmmmmmm....


J. Flávio / 28-04-11

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Vem aí !


Baseado em história do "Matozinho vai à Guerra"
de J. Flávio Vieira

Um curta de Jéfferson Albuquerque

Estrelando:

Kélvia Maia
Renato Dantas
Orleyna Moura
Cacá Araújo
Jean Nogueira
Franciolli Luciano
Raul Poeta
& grande elenco

Quando Maio chegar !

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Judas


Malhação AsSUSta ?



Pois é, amigos, contra fatos não há argumentação que se sustente. Este ano o Judas de Crato vai ser o SUS—o Sistema Único de Saúde. A eleição foi aberta e envolveu mais de treze mil eleitores, segundo notícia divulgada amplamente na imprensa regional. O SUS terminou eleito com mais de um terço dos votos apurados, vencendo os Políticos Corruptos, Muammar Kadafi, o Tsunami do Japão e os Candidatos Paraquedistas. Pela concorrência abatida nas urnas, dá para se ter uma idéia da antipatia da população para com o nosso Sistema de Saúde , já com a maioridade dos 21 anos e que simplesmente a vem decepcionando dia após dia. O descontentamento pode ser aferido a todo instante pelos noticiários: filas intermináveis, pacientes internos em macas e corredores, falta de leitos nas UTI´s, emergências superlotadas, gestantes dando à luz nas calçadas e ambulâncias. Os mais otimistas haverão de argumentar que a amostragem da pesquisa foi pequena, mas tenho a plena certeza de que o resultado não seria diferente se ampliássemos o universo a ser pesquisado. O SUS iria para o cadafalso da mesma maneira e teria seus miolos esfacelados em praça pública.

Apropriemo-nos da aura de santidade desses dias e reflitamos um pouco sobre a eleição. O resultado , claro, é indiscutível, mas merecerá, o nosso Sistema Único a pena de morte imposta pelo tribunal popular? Bem, como profissional de saúde há mais de 30 anos, sinto-me no dever de não lavar as mãos. Sei que, historicamente, o povo tem uma certa predisposição para privilegiar os Barrabás dessa vida. Não serei um Pilatos, embora corra o risco de deixarem também alguma cruzinha de sobra também para mim.

Criado com a Constituição de 1989, o SUS foi arrancado a fórceps do ventre do capitalismo. Para que se alcançasse esse benefício foi necessário que muitos fossem torturados, presos, assassinados. Nada nos foi dado, mas conquistado com sangue, suor e lágrimas. De repente, se viu o estado na obrigação legal de prover a saúde da população de forma universal e integral e, mais, tendo, necessariamente, que ouvir os ditames do povo através dos Conselhos de Saúde. O sonho, sabíamos desde então, era vultoso, imenso, quase que inatingível. Mas pela primeira vez, na história, o Brasil se via na imposição legal de assumir a saúde dos brasileiros, como nunca o fizera em quase quinhentos anos. Os avanços não são tão fáceis de se perceber, mas foram enormes e insofismáveis. Acabamos praticamente com todas as doenças de controle vacinal: pólio, sarampo, coqueluche, difteria e tantas outras patologias, sumiram da face do nosso país. As novas gerações não percebem isso porque simplesmente não conviveram com essas doenças que são do passado, hoje, por conta do SUS. A Mortalidade Infantil – uma tragédia nordestina histórica—foi reduzida de maneira drástica: cadê os enterros de anjos? Acabaram-se os indigentes, todos , agora têm acesso ( limitado, eu sei) aos exames dos mais simples aos mais sofisticados e aos tratamentos mais avançados: transplantes, cirurgia cardíaca, Neurocirurgia, hemodiálise, todos hoje existentes já no Cariri. Os medicamentos são distribuídos através das Farmácias Básica e Popular. O Programa de Agentes de Saúde e de Médico da Família aproximaram os profissionais dos seus pacientes e levaram médicos/enfermeiros/dentistas aos mais distantes rincões desse país. E, mais, criamos um imenso banco de dados epidemiológicos que facilitam imensamente as ações estratégicas de saúde. Em Crato, no ano passado, a maior causa de Morte foram as doenças cardiovasculares, em segundo as causas externas ( acidentes, homicídios, suicídios) e, em terceiro os cânceres. Estes dados não são diferentes dos países desenvolvidos.Apesar das seguidas epidemias de Dengue, não tivemos nos últimos anos um óbito sequer pela forma Hemorrágica( só este ano já tivemos três casos). Tudo isso seria impossível sem o rapazinho que vai ser malhado no próximo domingo.

Por que, então, a má fama do SUS? É preciso entender que o sonho de dar saúde integral e universal para duzentos milhões de habitantes bate num empecilho: financiamento. Cadê dinheiro para cobrir essa utopia? Verba limitada, os investimentos são alocados prioritariamente para a prevenção, o que é mais que perfeito. A área de alta complexidade como diálise, transplantes, cirurgias complexas, é cara e não pode ser limitada sob pena de se condenar um mundão de pacientes crônicos. O corte, então, foi feito justamente no setor secundário: o atendimento nos hospitais secundários. Essa limitação redundou no colapso da rede de urgência/emergência, com muitos hospitais fechando as portas e os doentes sendo penalizados todos os dias com desassistência, filas , espera, sofrimento e morte. São justamente esses sofredores e desassistidos que votaram pela malhação do grande vilão que vêem pela frente: o SUS.

Em solidariedade ao sofrimento do povo, até concordo com a malhação. Acredito que a politicagem rasteira ( pai de todos os males) é que mereceria ser enforcada, mas : vá lá ! Temo apenas pelo simbolismo. Pode passar a idéia que o melhor é matar, estraçalhar o SUS. É imprescindível não esquecer os seus avanços e a melhoria na qualidade de saúde da população. Para que tenhamos um SUS realmente eficaz , o caminho já foi descoberto. É luta! Um embate político para fazer com que o tema saia dos palanques e entre na vida real. A continuação da luta de tantos presos, mortos, torturados. E que pode ser encetado como na malhação : pelo voto livre e consciente. Colocar o pé na porta para que ela não se feche novamente para a o povo e empurrar forte para que tenhamos financiamento adequado e gestão eficiente. Precisamos do aperfeiçoamento e financiamento adequado do SUS e não da sua dissolução. Quando a bomba explodir dentro das entranhas do Sistema Único de Saúde, serão os brasileiros mais pobres que serão atingidos por suas farpas e serão eles mais uma vez que serão malhados, como, aliás, já o vem sendo há mais de quinhentos anos.

20/04/11

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Rasga Mortalha


--- D. Betilde , de novo ?

A velhinha , ao ouvir aquelas palavras insidiosas e enigmáticas, ficou amuada pelos cantos da casa. Tinha plena consciência : o destino é que havia traçado aquelas linhas sinuosas da sua vida. Mas, que jeito? Por outro lado, também, carregava consigo a certeza de que o temor da solidão a havia impelido a tantas reincidências, além, claro do charme pessoal e de um estranho fogo que ainda teimava em lhe arder pelas veias, mesmo sob o gelo inexorável do tempo. O certo é que os casamentos se foram sucedendo. O primeiro marido, Afonso, caixeiro-viajante, dormiu na direção do carro e despertou no paraíso. Deixou-a viúva nova e sem filhos. Botelho, homem sisudo, coletor de impostos, engraçou-se de uma Betilde fogosa, na flor dos anos, e arriou por ela os quatro pneus. Casou-se, viveu com a esposa uma felicidade fulminante de cinco anos, tão fulminante que acabou o fulminando, de um enfarte, nas portas dos quarenta. Betilde balzaquiana, novamente solteira, passados dois anos de luto oficial, começou a sofrer assédio de um tal de Leontino. O homem era dono de um pequeno armarinho e também enviuvara há poucos meses. Betilde achou o assédio precipitado, mas entendeu o pretendente: já se encaminhando para os setenta, era material perecível e que não podia ficar exposto às intempéries da solteirice por muito tempo. Terminaram no altar. Leontino, por incrível que possa parecer, foi um marido exemplar e resistente: manteve-se vivo, nas garras da mulher, por uns vinte anos, até que um belo dia dormiu na terra e acordou no firmamento. A partir desse velório, a fama de Betilde como rasga-mortalha começou definitivamente a se firmar. Fama que, se diga de passagem, os anos mostraram nada ter de exagero.

A partir da viagem celestial de Leontino, os casamentos de Betilde se sucederam. Com ela já beirando os sessenta, os novos pretendentes já não pagavam IPVA. Homem maduro só cata mulher nova. O que lhe ia sobrando eram aqueles já idosos, passados na casca do alho e que temiam as mocinhas com medo de não se refestelarem sozinhos, mas num banquete coletivo. Zivaldo, Geronildo e Marcelino seguiram a mesma sina dos seus antecessores, apenas desfrutaram dos prazeres e achaques matrimoniais por pouco tempo. A famosa frase : --- D. Betilde, de novo ? Foi pronunciada justamente por Salustiano, um antigo conhecido da rasga-mortalha, ante o caixão do sexto marido da nossa serial-killer: o tabelião aposentado Marcelino Florentino Parahyba, homem versado em almofadas, carimbos e reconhecimentos de firmas. Betilde, oitentona, já parecia não ter mais lágrimas para derramar: secara o veio . Talvez, por isso mesmo, tenha se amuado ante a insinuação algo maldosa de Salustiano: faltava-lhe água para lavar tantas máguas. De tantos enlaces, restara-lhe, no entanto, apenas um filho, nascido da mira certeira de Leontino , o menino carregava oficialmente o nome viril do pai, mas era chamado carinhosamente de Júnior.

Betilde decidiu baixar o facho após a partida do sexto esposo. Já era tempo ! E mais: quem diabo iria querer uma oitentona e ainda pior: com um cartel terrível de nocautes ? Aquietou-se, fez-se beata, botou para debulhar terços e mais terços: alma no purgatório para sua intercessão é o que não faltava! A multi-viúva esqueceu apenas um detalhe. Os tempos tinham passado e a modernidade viera com seus milagres. Fora-se o tempo em que homens maduros pronunciavam aquela frase famosa : “Enquanto houver língua e dedo, mulher não me mete medo!” Pois bem, a modernidade havia trazido consigo o viagra e o adiamento da morte viril. Imaginem, pois, impulsionado pelo novo espinafre do Popeye, quem começou a arriar uma asa para Betilde ? Nada mais nada menos que o fofoqueiro do Salustiano. Entre dentes, ele prometeu aos amigos que mandaria a serial killer desta para melhor. Vingaria seus seis antecessores. Betilde refugou no primeiro momento: Vade retro satanás! Não esquecia a frase famosa dele diante do esquife do pobre do Marcelino. Mas o assédio perdurou, a solidão falou mais alto ( Júnior fora tentar a sorte em São Paulo) e a matrimoniomania de Betilde reacendeu. Depois de uns seis meses, voltou ao altar agora ao lado de um grande e turbinado Salustiano.

Seis meses depois, os amigos choravam o passamento do amigo. O vingador batera catolé. Qual a causa mortis de Salustiano ? Ninguém sabe ao certo, mas existem algumas evidências. À noite, no velório todos notaram um volume excessivo elevando a mortalha na altura dos países baixos do noivo. Parecia o mastro central de um circo forçando a lona para cima, em direção aos céus. Vendo a mortalha prestes a se romper no meio, enquanto uma Betilde chorosa fungava num canto, um amigo comentou:

--- Menino, pelo visto, não é só D. Betilde que merece o apelido de Rasga-Mortalha, não ! Salustiano, também, manda ver !


J. Flávio Vieira

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Caju


D. Anfrozina , com a sabedoria que os anos lhe foram concedendo , percebera ,cedo , a implicância da filha com o marido : Sebasto. Giselda parecia uma bacurinha de pé de pilão: não deixava o homem em paz um só instante . Fuçava daqui, esperneava dali, roncava acolá. Anfrozina não morava com o casal, mas desfazia, por inteiro, a terrível fama das sogras. Sempre tomara partido do genro, talvez porque soubesse que a maior parte dos arrufos dependia da pouca tolerância da filha. Giselda, ao que parece, buscara sempre a figura perfeita de marido: íntegro, rico, romântico, viril, domesticável, sem vícios e barriga branca. Anfrozina fora a primeira a dissuadi-la de tal pretensão. O almejado ser apolínio e imaculado só existia nos livros de Mitologia.

--- Santo não casa minha filha ! D. Hélder, o Dalai Lama, Buda contraíram núpcias com Deus e não com essa rafaméia aqui da terra! Você devia dar graças aos céus ter conseguido encontrar ainda um beato feito Sebasto.

A opinião de Anfrozina não era muito diferente daqueles que conviviam de perto com o casal. Giselda, no entanto, não se convencia e continuava sua cruzada interminável em busca do companheiro perfeito. E a grande verdade é que a esposa não tinha lá razões para tanta choradeira e insatisfação. Sebasto não era rico, mas tinha um emprego estável de barnabé que os permitia levar uma vidazinha tranqüila e sem muitos atropelos. Era homem de casa e do trabalho, de temperamento dócil e deu a Giselda uma récua de filhos que, crescidos, assumiram o destino cigano do cearense e se espalharam Brasil afora. Beirando os sessenta, ainda tinha um fogo invejável, com muitas brasas inflamadas ainda por baixo da cinza acumulada por tantos anos. O marido só tinha um defeitozinho. Gostava de uma biritazinha diária, de queimar os dentes, mesmo assim raramente foi flagrado bêbado. Com o álcool mantinha a mesma compostura da sobriedade, apenas ficava um pouco mais palrador e extrovertido. Não se transformava em macaco, porco ou leão: virava papagaio. Giselda já o conhecera com este hábito, não comprou gato por lebre. Nos primeiros anos até que suportou a caninha do marido. Com o passar do tempo, no entanto, aumentou a implicância: vivia a reclamar pelos cantos e fazer cara de cobrador, quando Sebasto chegava mais alegre e falante. Os reclamos extrapolaram quando Giselda resolveu tornar-se evangélica. Aí o vício do companheiro tomou ares de pecado mortal e de artes do capeta. Sebasto ainda contra-argumentou : Jesus não era contra bebida de jeito nenhum, fosse assim , nas Bodas de Caná, teria transformado a água em cajuína e não em vinho. Giselda, desarmada no seu fundamentalismo, não se convencia e armava brigas que se estendiam por semanas. Vivia trombuda, amarga, sem compreender que destilar fel também podia ser pecado mortal. Já velho, em meio à saraivada inexplicável de impropérios, Sebasto foi compelido ao adultério. Arranjou uma gambiarra : uma viúva fogosa da repartição. Levou a coisa em banho-maria por uns dois anos. Ficou mais feliz e imune às implicâncias giseldianas. Um dia, no entanto, como sói acontecer, a mulher descobriu a tramóia e armou um barraco horroroso. Despiu-se de todas as lições de compreensão, solidariedade e perdão que aprendera nos cultos. Resolveu separar-se, mas foi dissimulada por Anfrozina e pelo pastor da sua igreja. Depois que a poeira sentou , chamou Sebasto que estava recolhido à casa da sogra e foi clara. Disse , com voz chorosa, que assumia sua parcela de culpa e que queria reatar o casamento. Sob duas condições apenas: que ele abandonasse de vez a viúva e mais : prometesse nunca mais pôr uma gota de álcool na língua. Sebasto estendeu os olhos para o jardim e , com água na boca, observou o cajueiro defronte à casa coberto de frutos rubro-amarelados, com o cheiro invadindo o mundo. Um manancial interminável de tira-gostos ao alcance das mãos. De língua seca, negociou: --- Tá certo, Giselda, paro de beber, mas deixe ao menos passar a safra do caju... A mulher, enraivada, sacou o temperamento velho ofídico que guardara cuidadosamente dentro da bíblia e rasgou:

--- Você é um bêbado inveterado mesmo, Sebasto ! Acho que esse seu vício não tem jeito. Mas a rapariga da viúva, esqueça, viu ! Ou ela ou eu !

Sebasto, calmamente, renegociou:

--- Mulher, já faz uns dois anos que estou com ela. Ela é depressiva, não posso chegar assim e acabar tudo de uma hora para outra! Tenho medo de suicídio. Preciso de um tempo ! Giselda, já exasperada, gritou:

--- Um tempo, é ? Um tempo, seu engraçadinho? Quanto tempo?

--- Uns quatro, cinco anos tá bom...



07/04/11