Ludovico,
depois de aposentado, resolveu preencher o vazio dos dias e das noites com oitos de cana. Perambulava pelos bares em
busca de solitários como ele e, ali, ia debulhando o rosário interminável dos
dias. Como velho é rebolo do cão derrubar juá, um dia começou a sentir uma dor
em pontada na barriga. Ligou, então, para um sobrinho que era médico na capital
e contou, por telefone, seus sintomas. O rapazinho, recém formado, já ciente da
vida de cobra de laboratório do tio, resolveu dá uma chacoalhada no velho para
ver se , enfim, ele tomava tento.
--- Tio, pelo jeitão, isso deve ser uma pancreatite, é bom
o senhor suspender esse levantamento de copo senão o senhor não emplaca 2026.
Pelo fio, o sobrinho ouviu a
reclamação do tio, pelo que ele considerava um exagero e um tratamento
drástico. Suspender a anestesia ? E que
diabos ele ia fazer com aquele vazio de
boi na fila do abate ? Ludu, então, respondeu na bucha:
--- Oxe, Felismino ! Eu
liguei pra tu foi pra me passar remédio, não foi pra ouvir conselho besta, não
!
E
terminou com aquela frase enigmática:
--- Agora, pronto ! Tu só
quer ser Raimundo Dantas !
Desconhecendo o personagem
citado, ao qual Ludu dizia que a ele se assemelhava, o médico ligou pra Matozinho e falou com a
mãe. Quem diabo era Raimundo Dantas, apontado como seu sósia , por Ludovico,
naquelas brenhas de lá ? Colhendo relatos, depois, do pai e dos tios, Dr.
Felismino, por fim, descobriu porque , aparentemente, Ludu achou que dele descendia.
Raimundo era um magarefe da
vila. Um cabra pragmático, direto e tido como ríspido. Não andava por veredas,
para ele só existia a estrada principal. Observador, chegou à conclusão que não existe
solidariedade entre os humanos. Qualquer atitude tomada , por mais benfazeja
que pareça, tem seu preço. Raimundo
tinha um tese de que ninguém visita doentes e moribundos no sentido de
confortar ou apoiar a família e o doente. Saem de lá capiongos, com os olhos marejando, mas
foram apenas para especular e depois fazer a resenha e a fofoca: “Morri de pena de Onorino, tá só a bandeira
do pirata ( a caveira e o pano) ! Acho que não vara essa semana, não, pelo
andar do cabriolé !”. Do alto de sua experiência de vida, sabendo que a
subsistência de um depende da morte e sacrifício do outro, dizia que as pessoas
iam não para solidarizar-se aos amigos e familiares, mas para um auto-conforto,
como se dissessem, “Tô lascado, mas isso
não é nada! Compadre Gilbertino tá muito pior, tá no bico do urubu ! Coitado !
No fundo, no fundo, a visita a moribundos, as
presenças em velório e em missas de sétimo dia, muito mais do que um ato de
misericórdia era uma pura atividade sádica. Uma íntima curtição com o
sofrimento alheio. Acredita-se que foi a partir dessa constatação que Raimundo
Dantas enveredou pelo Positivismo, não aquele preconizado por Compte, mas uma
escola pessoal, banhada num realismo cru, sem quaisquer temperos ou almofadas
de fantasia. Sua fama de rasga-mortalha se espalhou com a rapidez de fofoca de descabaçamento de moça em Matozinho. Passou a ser a visita temida dos
acamados, dos desmilinguidos, dos moribundos. E, claro, uma vasta folha corrida
de acontecidos lastreava esse temor.
O velho Nestor Picanço caíra doente há pelo menos uns seis meses.
Fora para capital, consultara DE doutor
de diploma A rezador afamado. Tomara caixete de botica e meizinha indicada por
raizeiro . Voltara e estava na mesma. Os filhos esconderam o diagnóstico de
câncer de próstata avançado que já se
espalhara pela coluna e pelo mucumbu. Nestor quebrara o cabo das tormentas dos noventa. Os
filhos reunidos decidiram que era melhor protegê-lo da sentença capital. Disseram
que se tratava de uma prostatite crônica, coisa da idade e que ele demoraria a
se recuperar. Amigos e aderentes iam visita-lo em casa, antes de entrar
recebiam a recomendação de que a doença era incurável, mas que Nestor não sabia
disso e que mantinha a fé inabalável na cura. Conversassem pois sobre assuntos
leves, miolo de pote, arisias, potocas, coisas que elevassem o astral do
condenado. Tudo ia bem até chegar o dia fatídico da perigosa visitação de
solidariedade de Raimundo Dantas. Os filhos sabiam da fama positivista do
visitante, mas imaginaram que ele se conteria, pois era compadre e amigo de longas datas de
Nestor. Parceiro de pife-pafe e pescarias, desde os tempos das vacas
esquálidas. Raimundo entrou no quarto e, embora tenha se impressionado com a magreza
do amigo, gostava dele e se controlou como pôde.
--- Compadre, você tá bem. A
gente tem que se conformar, pra ficar velho tem preço e é caro danado. Tá aí
meio borocochô, magro como cupim de metalúrgica, mas com aspecto bom danado.
Pensei que encontraria você mais abatido, como se tivesse caído de um avião.
O velho Nestor, então,
agradeceu e disse que estava se recuperando bem com o tratamento e que logo
mais voltaria à ativa e às pescarias no açude do Sabugo. O médico disse que eu tivesse paciência e que eu ia me curar !
Essa foi a deixa imediata
para o desencadeamento da avalanche positivista de Raimundo .
-- E foi, compadre ? Veja
como são as coisas ! Pois vai sair no Fantástico ! O pessoal do Guinesses Book
finalmente vem bater em Matozinho. Essa vai ser a primeira vez nesse mundo que um
cabra todo esfilepado com um Câncer, vai se curar ! Veja como são as coisas !
Revelado o terceiro segredo
de Fátima, Nestor amofinou, afinou as canelas , mandou comprar um terrenozinho
no cemitério e, antes da virada do ano, vestiu o pijama de tábua !
Dias depois foi prestar
solidariedade a Madre Firulina, da Congregação das Irmãs de Santa Genovena.
Madre Firu , já octogenária, começou a sentir o coração bater fora de compasso.
Foi ao médico , onde se constatou que o bicho já não batia, só apanhava. Foram
prescritos alguns remédios de botica que ela juntou a algumas raizadas que
comprara na banquinha da feira. O doutor, mesmo assim, alertou sua superiora . Era apenas questão de tempo
para a bomba bater a biela. Raimundo, manteve-se calmo, fugindo de perguntas
que redundassem em diagnóstico, tratamento e prognóstico. Ao se despedir, no
entanto, meteu a mão no bolso e tirou um bilhete. Pediu à Firulina o favor de entregá-lo
ao portador logo que encontrasse o destinatário. Ela ,acamada, não conseguiu
entender como poderia fazer o serviço de pombo-correio. Raimundo, de pronto, a
tranquilizou.
--- Tem pressa não ! Daqui
uns dias , Madre , a senhora encontra com ele! É para Noel Rosa, meu compositor favorito. Um
poeta daqueles deve estar no céu e eu
tenho certeza , montada na ruma de
terços que a senhora debulhou, daqui um pouquinho vai tá lá também, amontada
numa nuvem, tocando harpa. Aí a senhora entrega a ele, viu ? Seu coração,
irmãzinha, parece uma vela acesa no meio
de um tsunami !
Meses atrás, um primo de
Raimundo caiu seriamente doente. Estava já de mala arrumada e jumento arriado
na porta, esperando a viagem derradeira. O homem era muito impressionável,
excessivamente hipocondríaco e tinha mais medo da morte do que o capeta de água
benta. Raimundo fez menção de visitá-lo, mas a família, imediatamente, refugou.
Seria o tiro de misericórdia no pobre do Afonso. Raimundo estrebuchou, tentou
negociar, mas a família fincou pé: nã-nã-nim-nã-nã ! Raimundo procurou então o filho mais velho e
disse da sua pretensão. Como não visitar um amigo numa situação daquelas? O rapaz sabia da sinceridade do pai e,
também, posicionou-se contrário ao
desejo irrefreável de Raimundo.
--- Papai, Afonso já tá ruim
demais, com um pé na cova, não precisa do seu adjutório, não! Deixe pra ir
quando ele ensebar o capim! Pelo menos o senhor se livra de ser cúmplice do
abotoamento de paletó do homem !
Raimundo, no entanto, não se
convenceu e atubibou o juízo do filho. Era um crime o que estavam fazendo com
ele! A insistência foi tanta que Arionaldo, o filho , cedeu. Sob uma condição !
Você entra no quarto comigo mas tá proibido de dizer uma palavra que seja para
Afonso. Entra mudo e sai calado! Só eu,
falo ! Sob esta cláusula pétrea, negociou com os primos e, finalmente, seguiram
para a visita tão almejada.
Entraram no quarto a meia
luz. Na cama Afonso estava só a moqueca. Pálido, arfante, olhar um pouco vago,
como quem procura um remédio que lhe livrasse dos seus males. Arionaldo,
conforme combinado, falou pelos dois. Disse da preocupação com o tio e que ,
para sua surpresa, ele estava com aspecto muito bom, carecia só de tempo e
descanso para convalescer. Do lado, Raimundo permaneceu sério, algumas vezes esboçando um
leve sorriso. Cumpriu a promessa e não deu um pio. Ari, então se despediu,
desejando os melhores votos de pronto restabelecimento. Na cama, Afonso parecia
apático, mas agradeceu as palavras com o fiapo da voz que ainda lhe restava.
Arionaldo, terminada a despedida, saiu na frente, em direção à porta, Raimundo
o acompanhou, após fazer um pequeno
aceno com a mão para o primo. Logo que Ari atravessou a porta, antes de
Raimundo passar, virou-se, rapidamente para o primo acamado e , com uma adaptação
da linguagem de Libras, resumiu tudo. Balançou a cabeça de uma lado para o
outro, como quem diz : “Eii, num vai, não!”. Depois, botou a língua pra fora, revirou
os olhos e passou
a mão na altura do pescoço, imitando o corte de uma faca afiada: siuuuuuuu !
Aparentemente
Afonso decifrou a linguagem de sinais: degolado , poucas horas depois , cavalo selado, estava galopando pelas campinas
do céu.
Crato,
22/06/2025