domingo, 22 de junho de 2025

Positivismo em Matozinho

 

Ludovico, depois de aposentado, resolveu preencher o vazio dos dias e das noites com  oitos de cana. Perambulava pelos bares em busca de solitários como ele e, ali, ia debulhando o rosário interminável dos dias. Como velho é rebolo do cão derrubar juá, um dia começou a sentir uma dor em pontada na barriga. Ligou, então, para um sobrinho que era médico na capital e contou, por telefone, seus sintomas. O rapazinho, recém formado, já ciente da vida de cobra de laboratório do tio, resolveu dá uma chacoalhada no velho para ver se , enfim, ele tomava tento.

                   --- Tio, pelo  jeitão, isso deve ser uma pancreatite, é bom o senhor suspender esse levantamento de copo senão o senhor não emplaca 2026.

                   Pelo fio, o sobrinho ouviu a reclamação do tio, pelo que ele considerava um exagero e um tratamento drástico. Suspender a anestesia ?  E que diabos ele ia fazer  com aquele vazio de boi na fila do abate ? Ludu, então, respondeu na bucha:

                   --- Oxe, Felismino ! Eu liguei pra tu foi pra me passar remédio, não foi pra ouvir conselho besta, não !

                  E terminou com aquela frase enigmática:

                   --- Agora, pronto ! Tu só quer ser Raimundo Dantas !

                   Desconhecendo o personagem citado, ao qual Ludu dizia que a ele se assemelhava,  o médico ligou pra Matozinho e falou com a mãe. Quem diabo era Raimundo Dantas, apontado como seu sósia , por Ludovico, naquelas brenhas de lá ? Colhendo relatos, depois, do pai e dos tios, Dr. Felismino, por fim, descobriu porque , aparentemente, Ludu achou que dele  descendia.

                   Raimundo era um magarefe da vila. Um cabra pragmático, direto e tido como ríspido. Não andava por veredas, para ele só existia a estrada principal.  Observador, chegou à conclusão que não existe solidariedade entre os humanos. Qualquer atitude tomada , por mais benfazeja que pareça,  tem seu preço. Raimundo tinha um tese de que ninguém visita doentes e moribundos no sentido de confortar ou apoiar a família e o doente. Saem  de lá capiongos, com os olhos marejando, mas foram apenas para especular e depois fazer a resenha e a fofoca: “Morri de pena de Onorino, tá só a bandeira do pirata ( a caveira e o pano) ! Acho que não vara essa semana, não, pelo andar do cabriolé !”. Do alto de sua experiência de vida, sabendo que a subsistência de um depende da morte e sacrifício do outro, dizia que as pessoas iam não para solidarizar-se aos amigos e familiares, mas para um auto-conforto, como se dissessem, “Tô lascado, mas isso não é nada! Compadre Gilbertino tá muito pior, tá no bico do urubu ! Coitado !

                    No fundo, no fundo, a visita a moribundos, as presenças em velório e em missas de sétimo dia, muito mais do que um ato de misericórdia era uma pura atividade sádica. Uma íntima curtição com o sofrimento alheio. Acredita-se que foi a partir dessa constatação que Raimundo Dantas enveredou pelo Positivismo, não aquele preconizado por Compte, mas uma escola pessoal, banhada num realismo cru, sem quaisquer temperos ou almofadas de fantasia. Sua fama de rasga-mortalha  se espalhou com a rapidez de  fofoca de descabaçamento de moça  em Matozinho. Passou a ser a visita temida dos acamados, dos desmilinguidos, dos moribundos. E, claro, uma vasta folha corrida de acontecidos lastreava esse temor.

                   O velho Nestor Picanço  caíra doente há pelo menos uns seis meses. Fora para capital, consultara DE  doutor de diploma A rezador afamado. Tomara caixete de botica e meizinha indicada por raizeiro . Voltara e estava na mesma. Os filhos esconderam o diagnóstico de câncer de próstata  avançado que já se espalhara pela coluna e pelo mucumbu. Nestor  quebrara o cabo das tormentas dos noventa. Os filhos reunidos decidiram que era melhor protegê-lo da sentença capital. Disseram que se tratava de uma prostatite crônica, coisa da idade e que ele demoraria a se recuperar. Amigos e aderentes iam visita-lo em casa, antes de entrar recebiam a recomendação de que a doença era incurável, mas que Nestor não sabia disso e que mantinha a fé inabalável na cura. Conversassem pois sobre assuntos leves, miolo de pote, arisias, potocas, coisas que elevassem o astral do condenado. Tudo ia bem até chegar o dia fatídico da perigosa visitação de solidariedade de Raimundo Dantas. Os filhos sabiam da fama positivista do visitante, mas imaginaram que ele se conteria,  pois era compadre e amigo de longas datas de Nestor. Parceiro de pife-pafe e pescarias, desde os tempos das vacas esquálidas. Raimundo entrou no quarto e, embora tenha se impressionado com a magreza do amigo, gostava dele e se controlou como pôde.

                   --- Compadre, você tá bem. A gente tem que se conformar, pra ficar velho tem preço e é caro danado. Tá aí meio borocochô, magro como cupim de metalúrgica, mas com aspecto bom danado. Pensei que encontraria você mais abatido, como se tivesse caído de um avião.

                   O velho Nestor, então, agradeceu e disse que estava se recuperando bem com o tratamento e que logo mais voltaria à ativa e às pescarias no açude do Sabugo. O médico disse que eu tivesse paciência e que eu ia me curar !

                   Essa foi a deixa imediata para o desencadeamento da avalanche positivista de Raimundo .

                   -- E foi, compadre ? Veja como são as coisas ! Pois vai sair no Fantástico ! O pessoal do Guinesses Book finalmente vem bater em Matozinho. Essa vai ser a primeira vez nesse mundo que um cabra todo esfilepado com um Câncer, vai se curar ! Veja como são as coisas !

                   Revelado o terceiro segredo de Fátima, Nestor amofinou, afinou as canelas , mandou comprar um terrenozinho no cemitério e, antes da virada do ano, vestiu o pijama de tábua !

                   Dias depois foi prestar solidariedade a Madre Firulina, da Congregação das Irmãs de Santa Genovena. Madre Firu , já octogenária, começou a sentir o coração bater fora de compasso. Foi ao médico , onde se constatou que o bicho já não batia, só apanhava. Foram prescritos alguns remédios de botica que ela juntou a algumas raizadas que comprara na banquinha da feira. O doutor, mesmo assim, alertou  sua superiora . Era apenas questão de tempo para a bomba bater a biela. Raimundo, manteve-se calmo, fugindo de perguntas que redundassem em diagnóstico, tratamento e prognóstico. Ao se despedir, no entanto, meteu a mão no bolso e tirou um bilhete. Pediu à Firulina o favor de entregá-lo ao portador logo que encontrasse o destinatário. Ela ,acamada, não conseguiu entender como poderia fazer o serviço de pombo-correio. Raimundo, de pronto, a tranquilizou.

                   --- Tem pressa não ! Daqui uns dias , Madre , a senhora encontra com ele!  É para Noel Rosa, meu compositor favorito. Um poeta daqueles deve estar no céu e   eu tenho certeza ,  montada na ruma de terços que a senhora debulhou, daqui um pouquinho vai tá lá também, amontada numa nuvem, tocando harpa. Aí a senhora entrega a ele, viu ? Seu coração, irmãzinha,  parece uma vela acesa no meio de um tsunami !

                   Meses atrás, um primo de Raimundo caiu seriamente doente. Estava já de mala arrumada e jumento arriado na porta, esperando a viagem derradeira. O homem era muito impressionável, excessivamente hipocondríaco e tinha mais medo da morte do que o capeta de água benta. Raimundo fez menção de visitá-lo, mas a família, imediatamente, refugou. Seria o tiro de misericórdia no pobre do Afonso. Raimundo estrebuchou, tentou negociar, mas  a família fincou pé:  nã-nã-nim-nã-nã !  Raimundo procurou então o filho mais velho e disse da sua pretensão. Como não visitar um amigo numa situação daquelas?  O rapaz sabia da sinceridade do pai e, também, posicionou-se contrário  ao desejo irrefreável de Raimundo.

                   --- Papai, Afonso já tá ruim demais, com um pé na cova, não precisa do seu adjutório, não! Deixe pra ir quando ele ensebar o capim! Pelo menos o senhor se livra de ser cúmplice do abotoamento de paletó do homem !

                   Raimundo, no entanto, não se convenceu e atubibou o juízo do filho. Era um crime o que estavam fazendo com ele! A insistência foi tanta que Arionaldo, o filho , cedeu. Sob uma condição ! Você entra no quarto comigo mas tá proibido de dizer uma palavra que seja para Afonso. Entra mudo e sai calado!  Só eu, falo ! Sob esta cláusula pétrea, negociou com os primos e, finalmente, seguiram para a visita tão almejada.

                   Entraram no quarto a meia luz. Na cama Afonso estava só a moqueca. Pálido, arfante, olhar um pouco vago, como quem procura um remédio que lhe livrasse dos seus males. Arionaldo, conforme combinado, falou pelos dois. Disse da preocupação com o tio e que , para sua surpresa, ele estava com aspecto muito bom, carecia só de tempo e descanso para convalescer. Do lado, Raimundo  permaneceu sério, algumas vezes esboçando um leve sorriso. Cumpriu a promessa e não deu um pio. Ari, então se despediu, desejando os melhores votos de pronto restabelecimento. Na cama, Afonso parecia apático, mas agradeceu  as palavras  com o fiapo da voz que ainda lhe restava. Arionaldo, terminada a despedida, saiu na frente, em direção à porta, Raimundo o acompanhou,  após fazer um pequeno aceno com a mão para o primo. Logo que Ari atravessou a porta, antes de Raimundo passar, virou-se, rapidamente para o primo acamado e , com uma adaptação da linguagem de Libras, resumiu tudo. Balançou a cabeça de uma lado para o outro, como quem diz : “Eii, num vai, não!”. Depois, botou a língua pra fora, revirou os olhos  e   passou a mão na altura do pescoço, imitando o corte de  uma faca afiada: siuuuuuuu !

                   Aparentemente Afonso decifrou a linguagem de sinais: degolado ,  poucas horas depois ,  cavalo selado, estava galopando pelas campinas do céu.

                  

Crato, 22/06/2025


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Tigrões e Tchutchucas

 


Aconteceu, nesta semana, uma das cenas mais pedagógicas sobre o Estado Democrático de Direito, quando do início do julgamento do núcleo Central da Tentativa de golpe de Estado de 2022, perpetrada por Jair Bolsonaro e sua trupe de brucutus.  Diante da PGR  e da turma do STF estiveram depondo , entre outros, o ex-presidente, os Generais Augusto Heleno, Braga Neto, Almir  Garnier, o Tenente Coronel Mauro Cid, Alexandre Ramagem da ABIN, Anderson Torres ( ex-Ministro da Justiça) e o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira. Todos têm provas irrefutáveis de uma armação com fins de impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o estabelecimento de um regime de exceção e a execução sumária do presidente, de Alkmin e do Ministro Alexandre de Morais. Fechado o Congresso, deposto o STF,  viria aquele filme de terror a que todos já assistimos: perseguições, torturas, censura ampla, desaparecimentos e mortes. E -- como é frágil nossa Democracia !—o pior não aconteceu por meros detalhes. Os Chefes do Exército e da Aeronáutica se negaram a entrar no barco furado. O planejamento de tudo parece ter sido feito pelas Organizações Tabajara. Tudo organizado no aparelho do estado e pagos como marajás com dinheiro público.  Deixaram farto material os incriminando, talvez porque, tivessem a plena certeza de que tudo daria certo.  

                   Um a um ali se posicionaram os réus, tratados com cordialidade , com advogados renomados os defendendo, com testemunhas de defesa de alta patente, com direito a piadinhas e risos e incríveis pedidos de desculpa. Aí , Xandão ! Foi mal, velho !  Algo como:  Disse que o STF é corrupto, recebe propina, mas foi só exaltação do momento, taokei ! Coisa para animar as Redes Sociais ! Perdoe aí, dei os cinco tiros no senhor, mas não foi por querer não, estava meio nervoso !

                   Todos eles têm na sua cabeceira, com certeza, o retrato do Gal. Brilhante Ustra. Aquele que esfolava, matava, provocava estupros e abortos de militantes grávidas, arrancava unhas, dava choques elétricos em órgãos genitais e matava pelo simples prazer de matar. Numa ditadura , como a que se sonhou, não havia julgamento, juízes, advogados, testemunhas. Todos estariam no pau de arara, nos DOI-CODES, desaparecidos,  sujeitos à sanha dos facínoras. Por isso talvez, eles rissem e se divertissem no julgamento, com certeza da impunidade, afinal, comparado ao que seus adversários passaram na Ditadura Militar, aquilo era um piquenique. Serão condenados, com penas vultosas, mas quanto da pena pagarão de forma fechada? Os que não fugirem a tempo, adoecerão rapidamente e pedirão prisão domiciliar. Tadinhos !

                   O Brasil tem a oportunidade, quase que única, de pôr a questão a limpo. Nunca presenciamos um julgamento de militares graúdos e políticos de alta patente por um crime hediondo como Tentativa de Golpe. Este é o momento de cortar a cana sem deixar a soca. Eles diziam que bandido bom é bandido morto. Não precisamos de tanto. Que o bom bandido seja aquele que pague a pena justa pela atrocidade de perpetrou. A pena será terapêutica mas, mais que tudo, profundamente profilática.

 

Crato, 13/06/25


quarta-feira, 21 de maio de 2025

Uma Nação Reborn

 


                O Fascismo é fascinado por mentiras, não é por menos que a máquina de desinformação do Nazismo, encabeçada por Goebbels, era uma operação de guerra. Criando um mundo paralelo, termina-se por cair na armadilha que eles mesmos armaram, narrativa falsa montada em narrativa falsa, num determinado momento já é impossível separar o joio do trigo. Os inimigos naturais deles são exatamente a classe pensante , os intelectuais e os artistas, estes que não se submetem facilmente ao delírio coletivo que eles acabam por fabricar. Livros são queimados ( e muitas vezes também seus autores), cientistas , filósofos e artistas perseguidos , presos ,torturados e mortos. Utilizam um discurso de ódio , denunciando corrupção, desvios morais e inflamam o povo com um discurso patriótico, rememorando passagens heroicas dos livros de História e  prometendo o Shangrilá se chegarem ao poder. Em terra de cegos quem tem um olho é inimigo.  

         Combatem violentamente seus inimigos naturais. Os cientistas são rechaçados: negam as vacinas, os chatos , se mirando no espelho, dizem que a terra é plana. Qualquer iniciativa em prol da Cultura é rechaçada veementemente. A verba deveria ter sido utilizada na Construção de Hospitais, de Escolas e não em Centro Culturais! É uma safadeza financiar cinemas, shows e peças com dinheiro público ! Como se a Cultura não fosse uma coluna mestra de um país ! Quando viajam para a Europa ou para os Estados Unidos, babam ao visitar os Museus, ao ver os shows   e os espetáculos na Broadway. Aquele sim é que é um país desenvolvido!

         Ouvimos a eterna lenga-lenga quando se inaugurou o nosso Centro Cultural Sérvulo Esmeraldo, um projeto que deu uma nova cara ao Cariri e que nos enche de orgulho. O mesmo mi-mi-mi com a reforma dos nossos museus, patrimônio inequívoco da nossa cidade. A verba deveria ser utilizada na construção de escolas e postos de saúde! Se esse tivesse sido o destino, achariam outra destinação gloriosa para o investimento.

                   Impossível discutir com pessoas com uma concepção de mundo totalmente alheia à coletividade.  Os terraplanistas, os negacionistas , os milenaristas, os fanáticos criaram um mundo paralelo.  Como convencer os beatos de Pedra Bonita que Dom Sebastião não vai retornar ? Como fazer compreender os seguidores de Jim Jones que a nave espacial não chegará ? Ou que os ET´s não virão ajudar a derrubar o governo eleito no Brasil ? Ou que queimar pneu não serve como oferenda para santo ?

                   O mais preocupante é que , nos dias de hoje, com a globalização, com a inteligência artificial, a internet,  o poder da desinformação tomou proporções inimagináveis. A máquina que foi pensada por Goebbels modernizou-se e se tornou incontrolável. Agora o mundo paralelo virou quase uma xerox do real.

         Basta olhar ao redor para perceber que, como diria o Alienista do nosso Machado, a loucura já não é uma ilha mas se tornou um continente. Trabalhadores defendem a Reforma da Previdência que lhes tirou direitos sagrados; pobres assumem discurso de empresários; vendedores de quebra-queixo têm pose de empreendedores; casais trocaram filhos por pets e bebês reborns; o Congresso está atulhado de falsos profetas, de bancadas da bala, do Apocalipse, do latifúndio e, pior, eleitos maciçamente pelos seus oprimidos.

         O sonho de gerações anteriores:  de um país grande, autônomo, multirracial e pluritolerante , uma nova potência mundial, virou essa coisa amorfa, insulsa: uma  ação Reborn.

 

Crato, 21/05/23