sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Há também um Pelourinho nas praças virtuais

 



 

                               A força do Direito deve superar o direito da força.

                                                                               Rui Barbosa

 

                               Uma das notícias mais quentes nas Redes Sociais e conversas de pé de ouvido, nestes dias, em Crato, diz respeito a uma denúncia de Assédio Sexual sofrido por uma servidora municipal. A repercussão tomou conta desta grande praça virtual que a Internet construiu e, entre nós, salta mais ainda aos olhos por conta da chaga do feminícidio que nos aflige. A pauta, de tão frequente, nem aquece mais as páginas dos noticiários. Pesquisa recente feita pela Agência Brasil , em grandes cidades brasileiras, revela que mais de 75% das mulheres já sofreram desse abuso em ruas, praças, parques ,  praias, transporte público e trabalho. Ano passado a CGU recebeu em média duas denúncias por dia de Assédio Sexual na Esfera Federal. Entre 2020 e 2023  a Justiça do Trabalho protocolou quase 23.000 casos para julgamento.

                   Neste caso específico é preciso louvar a coragem da vítima em denunciar, buscar os meios legais para livrar-se de suas aflições, mesmo sabendo da exposição a que, inevitavelmente, vai se submeter. E imaginar também as dificuldades em arrolar provas, numa área em que as coisas são sutis, ocultas e que, em geral, não existem testemunhas.  No fim, a denunciante  não está apenas tentando resolver uma agressão a que diz ter sido submetida,  mas ajudando a minorar um crime frequente, velado e subestimado e incentivando outras vítimas a tomarem a mesma decisão, enfrentando julgamentos por parte da sociedade, geralmente entranhados de um machismo ancestral , difícil de se combater.

                   Do lado da sociedade, o apoio aos vitimados é fundamental, no sentido de desarmar esta arapuca  e fazer com que os agredidos se tornem acolhidos e não ridicularizados. Por outro lado, claro, a grande praça virtual em que se tornaram as Redes Sociais, transformou-se num meio essencial para impulsionar as denúncias, mas, também, um monstro de difícil controle. Reputações criam-se e  destroem-se  com a mesma velocidade e justificadas com aquela mesma superficialidade das conversas de botequim. Em 1994, em São Paulo, lembrem aí, a Escola de Base foi destruída por uma falsa denúncia de abuso sexual feita pela imprensa e, na época, as Redes Sociais ainda engatinhavam. Imaginem, hoje, com o impulsionamento robotizado e  criminoso de Fakenews, o risco a que todos estamos submetidos.

                   Feita a denúncia , um direito de qualquer cidadão em se resguardar e buscar reparação, o processo  se estabelece tanto a nível administrativo como  civil. Órgãos de defesa da mulher abrem seu guarda-chuvas e o julgamento deve seguir o mais célere possível nas duas esferas. O grande conflito é o do pré-julgamento a que o acusado é submetido, A Internet se torna, rapidamente, um Fórum midiático . A presunção de inocência, direito sagrado  de qualquer cidadão acusado de crime vai pro beleléu. No primeiro momento,  ele já é  considerado culpado, mesmo no caso específico com um acusado sem quaisquer antecedentes na sua conduta. Ele será levado à guilhotina social, independentemente de provas ou de parecer final do judiciário. Se , por acaso, transitado em julgado, muitos meses ou anos depois, for considerado inocente, como recuperar a sua vida profissional, pessoal, social que foi estraçalhada durante o processo ? Quem lhe devolverá a honra, o emprego, as relações sociais levadas ao esgoto ?

                   No caso específico do Crato, existe ainda o agravante político. A vítima é servidora municipal e o grande tsunami que se formou não engole apenas o pretenso agressor, mas invade os gabinetes do Palácio Alexandre Arraes, molhando o tapete e os birôs de pessoas que não  têm responsabilidade direta na questão. Por outro lado, num país tão polarizado, a oposição lança farpas para todo lado, aumentando o fogo já instalado. Lembrar que políticos, geralmente, não têm qualquer compromisso com a verdade. Apenas na verdade que lhes interessa. Pensam apenas nos seus interesses pessoais e estratégicos. O indignado de agora, se se tratasse de alguém a ele ligado politicamente, teria um discurso totalmente diverso, pedindo até a canonização junto à Santa Sé do acusado de assédio.

                   No meio disso tudo , ferida nessa guerra de narrativas e interesses , está  a denunciante e também o denunciado. Que a vida lhes seja devolvida.  Que a justiça dê a última palavra  e , havendo culpado,  ele responda por seus atos. Mas que, também,  lhe seja dado o amplo direito constitucional de defesa e que não seja levado ao cadafalso físico e moral, antes que o poder judiciário dê a sua palavra final. Isso é o que se espera de uma Democracia tão agredida, vilipendiada nos últimos tempos, mas que permanece viva e em vigília.  

Crato, 05/09/25

                    


segunda-feira, 21 de julho de 2025

Os Ínsipidos Jardins do Éden

 



 

                                                                                                            “O inferno são os outros”

                                                                                                                                         Sartre

 

                               No princípio , a Feira existia em função do desenvolvimento e aprimoramento da pecuária e agricultura. Os galpões e currais se abarrotavam de aves,  zebus, ovinos e caprinos, num berreiro sem fim que parecia berçário de maternidade. Negociavam-se produtos agrários e  plantéis de raças variáveis e até então desconhecidas. Os Bancos,  interessados também no negócio, rápido chegaram junto, como parceiros , intermediando as transações e catando e peneirando o lucro nas suas bateias .  Ao derredor da Feira se foram postando barracas de palha, como uma rudimentar praça de alimentação.  Com o fluxo de pessoas, aumentando a cada ano, era preciso alimentar os vaqueiros, os agricultores e os potenciais fregueses da feirinha.

                   Espontaneamente,  surgiu a pergunta silente: e à noite, transcorrido o dia de trabalho e de negociatas, não seria premente uma diversãozinha? Ninguém é de ferro ! E aí foram surgindo os arremedos de bares e de botecos, bem na periferia. Mantinham distância regulamentar,   como se temessem quebrar o ar solene da festa. A cachaça , naturalmente, exigiu trilha sonora e começaram a trinar as sanfonas, os pandeiros, os zabumbas e os triângulos que se foram multiplicando e poderiam até formar uma orquestra, se não houvesse muitos maestros e um repertório díspare e eclético: samba, coco, xaxado, marchinha e xote.  Sob o encanto da música e do aguardente, veio a dança , levantaram-se latadas e o forró comeu solto nas noites cratenses de julho. A festa, aos poucos, transformou-se de agropecuária em,  também,  festiva, dançante  e musical. E a música e a fanfarra começaram a invadir as barracas mais chiques e o picadeiro principal da festinha, aquele dedicado , inicialmente, apenas à exposição dos melhores plantéis de cada raça.  O lúdico , como sempre, se multiplica fácil e um dia Gonzagão puxou o fole no picadeiro central. Depois até Trio Elétrico animou as noites que fechavam os árduos sete dias da Exposição.

                   A música, como sempre acontece, criou marra, cresceu e foi preciso até   fazer um puxadinho para o mais chique clube cratense. Esticando a noite e a festa, a sociedade cratense ia para o  Tênis Clube e a farra varava madrugada adentro. Era uma luta contra o tempo !  Como era impossível esticar os alegres momentos, tinha-se  a possibilidade de ampliar,  com a noite,  a  festa que só durava sete dias, aqueles mesmos que o Criador usou no Gênesis, para a criação do universo. Transferida a festança para o puxadinho,  a música e a dança continuavam presentes e vivas no parque, apenas a sociedade encontrara um jeitinho de separar os bacanas do clube,   dos esfarrapados das barraquinhas periféricas.

                   Com o tempo,  o objetivo primeiro da Exposição se foi obnubilando pelo caráter festivo. A Festa virou um megaevento, tomou de assalto toda a região por uma semana, quebrou todas as fronteiras geográficas e o pandeiro, a sanfona e o triângulo se viram assolados por uma praga midiática de Sertanojos com sotaque do Country e Forrozeiros insulsos  e  Isoporizados. Shows milionários pra boi dormir, aliás, pra boi ficar a noite toda de olho grelado.

                   Estes dias também foram virando  um momento de encontro e reencontro de várias gerações de cratenses que aqui retornam, com ar saudosista, órfãos de uma antiga  bem-aventurança ,  como se perguntassem em que lugarzinho deixaram escondidos aqueles raios de juventude, banhados  de simples felicidade, onde a alegria brotava espontânea, como a água nas levadas dos pés de serra.    

                   A agropecuária mixou, a música regional sufocou. O que restou, afinal ? Existe vida para além dos acordes multimilionários da apoteótica Expocrato de hoje ?

                   Aquela primal festa da periferia da Exposição foi, pouco a pouco, empurrada, ladeira abaixo,  para a proximidade dos currais que abrigam os animais. Ali mantinha sempre um estrutura rudimentar, sem barracas estruturadas e padronizadas, como as da área nobre , em volta do picadeiro. Recebeu, depreciativamente, o nome de Infernim. A sociedade sempre a acusou de abrigar a ralé  da festa, o povinho, os descamisados, os cachaceiros e os namoros despudorados e  proibidos. Hoje, o Infernim, pasmem vocês, virou Cult. Poetas, intelectuais, estudantes, universitários, jovens fizeram do Infernim o seu paraíso, descobriram ali a antiga e glamourosa Exposição de anos atrás. Ali é possível ouvir ainda a música de raiz, os preços são convidativos, os petiscos  mais caririenses . E é possível  -- veja que coisa incrível --  até conversar.

                   Aldous Huxley perguntava : E se esse mundo for apenas o inferno de um outro planeta ? Na vida, se a gente reparar direito, alegria e tristeza, amor e ódio, saúde e doença são limítrofes e não têm fronteiras bem definidas. O céu e inferno são o anverso e reverso de uma mesma medalha. O inferno para nós cratenses não nos atormenta, o Infernim arrancou de nós o medo.   Como no Jogo da Amarelinha, as  frias noites de julho  mostraram que é possível saltar os dez números a partir do inferno, jogar a pedrinha do sonho no numeral desejado e alcançar, sem burocracias,  o Céu desejado. Aprendemos , com as noites de julho,  que entre o céu e o inferno a fronteira é tênue e que há mais alegria , música, leveza e verdade  do outro lado dos insípidos jardins do éden.  !

 

Crato, 17/07/2025


domingo, 22 de junho de 2025

Positivismo em Matozinho

 

Ludovico, depois de aposentado, resolveu preencher o vazio dos dias e das noites com  oitos de cana. Perambulava pelos bares em busca de solitários como ele e, ali, ia debulhando o rosário interminável dos dias. Como velho é rebolo do cão derrubar juá, um dia começou a sentir uma dor em pontada na barriga. Ligou, então, para um sobrinho que era médico na capital e contou, por telefone, seus sintomas. O rapazinho, recém formado, já ciente da vida de cobra de laboratório do tio, resolveu dá uma chacoalhada no velho para ver se , enfim, ele tomava tento.

                   --- Tio, pelo  jeitão, isso deve ser uma pancreatite, é bom o senhor suspender esse levantamento de copo senão o senhor não emplaca 2026.

                   Pelo fio, o sobrinho ouviu a reclamação do tio, pelo que ele considerava um exagero e um tratamento drástico. Suspender a anestesia ?  E que diabos ele ia fazer  com aquele vazio de boi na fila do abate ? Ludu, então, respondeu na bucha:

                   --- Oxe, Felismino ! Eu liguei pra tu foi pra me passar remédio, não foi pra ouvir conselho besta, não !

                  E terminou com aquela frase enigmática:

                   --- Agora, pronto ! Tu só quer ser Raimundo Dantas !

                   Desconhecendo o personagem citado, ao qual Ludu dizia que a ele se assemelhava,  o médico ligou pra Matozinho e falou com a mãe. Quem diabo era Raimundo Dantas, apontado como seu sósia , por Ludovico, naquelas brenhas de lá ? Colhendo relatos, depois, do pai e dos tios, Dr. Felismino, por fim, descobriu porque , aparentemente, Ludu achou que dele  descendia.

                   Raimundo era um magarefe da vila. Um cabra pragmático, direto e tido como ríspido. Não andava por veredas, para ele só existia a estrada principal.  Observador, chegou à conclusão que não existe solidariedade entre os humanos. Qualquer atitude tomada , por mais benfazeja que pareça,  tem seu preço. Raimundo tinha um tese de que ninguém visita doentes e moribundos no sentido de confortar ou apoiar a família e o doente. Saem  de lá capiongos, com os olhos marejando, mas foram apenas para especular e depois fazer a resenha e a fofoca: “Morri de pena de Onorino, tá só a bandeira do pirata ( a caveira e o pano) ! Acho que não vara essa semana, não, pelo andar do cabriolé !”. Do alto de sua experiência de vida, sabendo que a subsistência de um depende da morte e sacrifício do outro, dizia que as pessoas iam não para solidarizar-se aos amigos e familiares, mas para um auto-conforto, como se dissessem, “Tô lascado, mas isso não é nada! Compadre Gilbertino tá muito pior, tá no bico do urubu ! Coitado !

                    No fundo, no fundo, a visita a moribundos, as presenças em velório e em missas de sétimo dia, muito mais do que um ato de misericórdia era uma pura atividade sádica. Uma íntima curtição com o sofrimento alheio. Acredita-se que foi a partir dessa constatação que Raimundo Dantas enveredou pelo Positivismo, não aquele preconizado por Compte, mas uma escola pessoal, banhada num realismo cru, sem quaisquer temperos ou almofadas de fantasia. Sua fama de rasga-mortalha  se espalhou com a rapidez de  fofoca de descabaçamento de moça  em Matozinho. Passou a ser a visita temida dos acamados, dos desmilinguidos, dos moribundos. E, claro, uma vasta folha corrida de acontecidos lastreava esse temor.

                   O velho Nestor Picanço  caíra doente há pelo menos uns seis meses. Fora para capital, consultara DE  doutor de diploma A rezador afamado. Tomara caixete de botica e meizinha indicada por raizeiro . Voltara e estava na mesma. Os filhos esconderam o diagnóstico de câncer de próstata  avançado que já se espalhara pela coluna e pelo mucumbu. Nestor  quebrara o cabo das tormentas dos noventa. Os filhos reunidos decidiram que era melhor protegê-lo da sentença capital. Disseram que se tratava de uma prostatite crônica, coisa da idade e que ele demoraria a se recuperar. Amigos e aderentes iam visita-lo em casa, antes de entrar recebiam a recomendação de que a doença era incurável, mas que Nestor não sabia disso e que mantinha a fé inabalável na cura. Conversassem pois sobre assuntos leves, miolo de pote, arisias, potocas, coisas que elevassem o astral do condenado. Tudo ia bem até chegar o dia fatídico da perigosa visitação de solidariedade de Raimundo Dantas. Os filhos sabiam da fama positivista do visitante, mas imaginaram que ele se conteria,  pois era compadre e amigo de longas datas de Nestor. Parceiro de pife-pafe e pescarias, desde os tempos das vacas esquálidas. Raimundo entrou no quarto e, embora tenha se impressionado com a magreza do amigo, gostava dele e se controlou como pôde.

                   --- Compadre, você tá bem. A gente tem que se conformar, pra ficar velho tem preço e é caro danado. Tá aí meio borocochô, magro como cupim de metalúrgica, mas com aspecto bom danado. Pensei que encontraria você mais abatido, como se tivesse caído de um avião.

                   O velho Nestor, então, agradeceu e disse que estava se recuperando bem com o tratamento e que logo mais voltaria à ativa e às pescarias no açude do Sabugo. O médico disse que eu tivesse paciência e que eu ia me curar !

                   Essa foi a deixa imediata para o desencadeamento da avalanche positivista de Raimundo .

                   -- E foi, compadre ? Veja como são as coisas ! Pois vai sair no Fantástico ! O pessoal do Guinesses Book finalmente vem bater em Matozinho. Essa vai ser a primeira vez nesse mundo que um cabra todo esfilepado com um Câncer, vai se curar ! Veja como são as coisas !

                   Revelado o terceiro segredo de Fátima, Nestor amofinou, afinou as canelas , mandou comprar um terrenozinho no cemitério e, antes da virada do ano, vestiu o pijama de tábua !

                   Dias depois foi prestar solidariedade a Madre Firulina, da Congregação das Irmãs de Santa Genovena. Madre Firu , já octogenária, começou a sentir o coração bater fora de compasso. Foi ao médico , onde se constatou que o bicho já não batia, só apanhava. Foram prescritos alguns remédios de botica que ela juntou a algumas raizadas que comprara na banquinha da feira. O doutor, mesmo assim, alertou  sua superiora . Era apenas questão de tempo para a bomba bater a biela. Raimundo, manteve-se calmo, fugindo de perguntas que redundassem em diagnóstico, tratamento e prognóstico. Ao se despedir, no entanto, meteu a mão no bolso e tirou um bilhete. Pediu à Firulina o favor de entregá-lo ao portador logo que encontrasse o destinatário. Ela ,acamada, não conseguiu entender como poderia fazer o serviço de pombo-correio. Raimundo, de pronto, a tranquilizou.

                   --- Tem pressa não ! Daqui uns dias , Madre , a senhora encontra com ele!  É para Noel Rosa, meu compositor favorito. Um poeta daqueles deve estar no céu e   eu tenho certeza ,  montada na ruma de terços que a senhora debulhou, daqui um pouquinho vai tá lá também, amontada numa nuvem, tocando harpa. Aí a senhora entrega a ele, viu ? Seu coração, irmãzinha,  parece uma vela acesa no meio de um tsunami !

                   Meses atrás, um primo de Raimundo caiu seriamente doente. Estava já de mala arrumada e jumento arriado na porta, esperando a viagem derradeira. O homem era muito impressionável, excessivamente hipocondríaco e tinha mais medo da morte do que o capeta de água benta. Raimundo fez menção de visitá-lo, mas a família, imediatamente, refugou. Seria o tiro de misericórdia no pobre do Afonso. Raimundo estrebuchou, tentou negociar, mas  a família fincou pé:  nã-nã-nim-nã-nã !  Raimundo procurou então o filho mais velho e disse da sua pretensão. Como não visitar um amigo numa situação daquelas?  O rapaz sabia da sinceridade do pai e, também, posicionou-se contrário  ao desejo irrefreável de Raimundo.

                   --- Papai, Afonso já tá ruim demais, com um pé na cova, não precisa do seu adjutório, não! Deixe pra ir quando ele ensebar o capim! Pelo menos o senhor se livra de ser cúmplice do abotoamento de paletó do homem !

                   Raimundo, no entanto, não se convenceu e atubibou o juízo do filho. Era um crime o que estavam fazendo com ele! A insistência foi tanta que Arionaldo, o filho , cedeu. Sob uma condição ! Você entra no quarto comigo mas tá proibido de dizer uma palavra que seja para Afonso. Entra mudo e sai calado!  Só eu, falo ! Sob esta cláusula pétrea, negociou com os primos e, finalmente, seguiram para a visita tão almejada.

                   Entraram no quarto a meia luz. Na cama Afonso estava só a moqueca. Pálido, arfante, olhar um pouco vago, como quem procura um remédio que lhe livrasse dos seus males. Arionaldo, conforme combinado, falou pelos dois. Disse da preocupação com o tio e que , para sua surpresa, ele estava com aspecto muito bom, carecia só de tempo e descanso para convalescer. Do lado, Raimundo  permaneceu sério, algumas vezes esboçando um leve sorriso. Cumpriu a promessa e não deu um pio. Ari, então se despediu, desejando os melhores votos de pronto restabelecimento. Na cama, Afonso parecia apático, mas agradeceu  as palavras  com o fiapo da voz que ainda lhe restava. Arionaldo, terminada a despedida, saiu na frente, em direção à porta, Raimundo o acompanhou,  após fazer um pequeno aceno com a mão para o primo. Logo que Ari atravessou a porta, antes de Raimundo passar, virou-se, rapidamente para o primo acamado e , com uma adaptação da linguagem de Libras, resumiu tudo. Balançou a cabeça de uma lado para o outro, como quem diz : “Eii, num vai, não!”. Depois, botou a língua pra fora, revirou os olhos  e   passou a mão na altura do pescoço, imitando o corte de  uma faca afiada: siuuuuuuu !

                   Aparentemente Afonso decifrou a linguagem de sinais: degolado ,  poucas horas depois ,  cavalo selado, estava galopando pelas campinas do céu.

                  

Crato, 22/06/2025