terça-feira, 19 de novembro de 2024

Marquises

 


J. Flávio Vieira

 

                --- Vocês não sabem do absurdo ! Rauzito foi recolhido à Fundação Casa, hoje ! Foi pego no sinal cheirando cola ! Pode ?

 

                        A notícia se alastrou como faísca correndo no estopim .  Um menino de oito anos, já viciado em drogas ? Onde vamos parar ? Rauzito   era conhecido de muita gente. Franzino, portando sempre uma camiseta puída de lycra e uma bermuda de longa vida, invariavelmente suja,   fazia ponto em um dos sinais da pomposa rua Abelardo Studart, vendendo balas, limpando para-brisas --entre o vermelho e o verde—e  pastorando carros estacionados ao longo da via. Tinha por casa uma marquise de uma loja de departamentos próxima dali. Era tido como um marajá da via pública. Para os colegas de rua, tinha a casa mais suntuosa  do centro comercial da cidade. Defendia seu espaço, com unhas e dentes, como se tivesse conseguido o direito por usucapião. A reação de surpresa do povo, por incrível que possa parecer, foi pelo vício precoce de Rauzito e não pelo outro absurdo que já se tornara normalidade: uma criança de oito anos ter por lar a via pública. Antes,  a população já se indignara quando Rauzito , defendendo seu território, a sombra da marquise, agredira um outro guri que  se fez de posseiro, sem imaginar que já lhe pertencia. Quem vive na cidade não entende das leis da selva!  E agora o povo parecia boquiaberto com a descoberta de que já na infância o vício estava se alastrando.

                        D. Veridiana, uma coquete da vila, chacoalhando suas joias, pediu donativos, num clube de serviço,  para a Infância Abandonada da cidade: A Caridade é o Caminho para o céu ! O Padre Gilbertino, na homilia daquele domingo, explicou que o vício era a presença do demônio no seio da sociedade e pregou um reforço nos óbolos para ajudar a infância desvalida. O prefeito Sinderval Codó, em entrevista na Rádio  “A Voz da Bíblia” , informou ter colocado toda a Secretaria de Ação Social  na investigação das causas daquele crime e a polícia já abrira inquérito para descobrir os responsáveis pela distribuição da droga nas ruas. Cacildo Honório, “A Voz de Ouro do Rádio”, no Programa “ Ronda Policial” , pediu providências urgentes da polícia na repressão ao tráfico de drogas no município que se tornara uma calamidade. Onildo Jurema, o presidente do Partido Comunista Operário Obreiro, o PCOO, que faz oposição ao atual governante, propôs a deposição imediata do prefeito que, segundo ele, era o proprietário do Jogo do Bicho local e sócio da Facção que comandava o tráfico na região. Em meio à indignação geral de superfície, as múltiplas propostas de solução do caso Rauzito, uma pergunta permaneceu no ar, perfeitamente intocada, procurando uma resposta, assim como os meninos moradores de vias públicas procuravam o Estado: Por que Rauzito , de oito anos, sem pais e sem país, tem por casa uma marquise ?

                        Na Fundação Casa , Rauzito chega agitado, confuso. Menos por não entender o motivo da sua detenção do que pelo medo de perder, para os outros zumbis que invadem a rua, a única propriedade que possui por usucapião: a marquise. Alimentado, dorme à noite numa cama mais confortável do que a sua, mas, ansioso,  sabe que não lhe pertence. Encontra-se com uma tropa de iguais abandonados,  aqueles que nunca tiveram infância, apenas a luta pela sobrevivência: um monstro a cada dia, um fantasma em cada esquina. Apesar de tudo, a desgraça comum lhe traz algum conforto, talvez por ser o único socialismo que conhece: o da miséria. No dia seguinte, a Assistente Social o entrevista junto com a psicóloga.

                        --- Rauzito, por que você decidiu morar na rua ? Você não tinha pai e mãe ?

                        --- Meu pai nunca conheci. Mamãe disse que era o patrão dela na casa em que ela trabalhava, mas era casado e nunca assumiu. Conheci só meu padrasto que batia e abusava de mim desde eu bem pequenininho.

                        --- E foi por isso que você fugiu de casa e foi para a rua ?

                        --- Não, a polícia , antes de mim, matou meu padrasto. Ele era descuidista. Um dia se descuidou. Fui para a rua quando minha mãe morreu. Era viciada na “pedra” e, um dia, fumou mais do que devia.

                        --- E por que você começou a cheirar cola, para anestesiar e aguentar a viver na rua ?

                        --- Não, porque só quando cheiro a latinha de cola é quando eu consigo ver e conversar com minha mãe...

                        A  Psicologia e a Assistência Social viram-se, de repente, diante do sinal vermelho. Tinham há pouco tornado Rauzito, novamente, um sem teto e , agora, lhes pairava aquela sensação de que haviam matado sua mãe por uma segunda vez. Era justo arrancar-lhe das mãos a latinha que , ao menos, lhe proporcionava o bálsamo do sonho, sem que lhe ofertassem , em troca, um mundo mais justo e respirável ?  

 

J. Flávio Vieira

Crato, 08/11/24

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Marcas na areia sob a chuva

 

                                      


                                                                                                J. Flávio Vieira

 

                               Bem para lá “del mezzo del cammin de nostra vita” , no dizer de Dante, pomo-nos a olhar para trás observando a longa estrada percorrida até aqui. Há mais caminho às nossas costas do que à nossa frente. Batemos a poeira do longo percurso e, tantas vezes, caímos nas armadilhas do condicional. E se tivéssemos escolhido outras veredas ? Se naquele diz não  frequentasse aquela balada onde conheci a Lurdinha ? E se houvesse optado por outra profissão, não seria mais próspero ? A cada instante víamo-nos diante de veredas  e bifurcações na trajetória e presisamos que escolher que direção tomar. Aquela terá sido a melhor decisão?   Encontraríamos menos abismos e pedregulhos e lobos   se , como Chapeuzinho , tivéssemos preferido o caminho da floresta ao invés do que margeia o rio ?

                   Aqui, ali  foram-nos oferecidas alternativas e ofertadas, a seguir,  as consequências das nossas escolhas. Diferentemente das trilhas que seguimos pelos bosques, a da vida tem mão única. O sentido é um só e, à frente – sem que se saiba em que curva do trajeto—há um abismo sempre a nos esperar.  A visão pelo retrovisor, apesar de atraente e inevitável, é sempre inócua. Não há possibilidade de manobra e retorno. Não deveríamos lamentar escolhas pretéritas, aparentemente desacertadas sob as lentes do hoje. It´s My Way, como cantaria Sinatra. Sempre o mais grave não é a vereda errada que selecionamos, mas, principalmente, a curtição insuficiente do percurso, por mais íngreme e acidentado que ele seja.  O verbo viver só se conjuga no Presente do Indicativo, nunca no Passado ou no Futuro, nem no Imperativo ou Subjuntivo.

                   Numa curva à frente – sabe-se lá onde –  o  fojo  já nos espreita. Quando despencarmos, no último voo do Ícaro, talvez nos passe pelos olhos o filme da viagem de um a outro precipício. Que resquícios ficarão, pelas margens sinuosas da trilha, da nossa passagem ?  Pegadas, detritos,  entulhos, marcas em troncos de árvores ? Alguns avisos e sinais que lembrem aos outros viandantes, que nos seguem logo atrás, dos perigos e acidentes espalhados pelas vielas ?  Ou o legado do silêncio e a leveza do colibri ou da luz que trespassa a superfície das águas deixando-a incólume e intocada ?  O certo é que nossa viagem será  única, irretornável  e solitária. Tentaremos deixar marcas da nossa passagem pelas margens da estrada, mas serão apagadas irremediavelmente com as primeiras chuvas de verão. E, no voo final que nos espera, no pélago adiante, a única mala permitida será guardada no bagageiro do  coração e não poderá ser resgatada na esteira do aeroporto.

 

Crato, 19/10/24                                                                                                                                                                     

                    

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

O Velório Eterno do Leite Derramado

 


Pois bem, amigos , findou o período eleitoral aqui em Crato. Uma campanha acirrada,  marcada por catimba, golpes abaixo da cintura, agressões de lado a lado, onde a mira dos fuzis foi apontada mais para o pessoal do que para o coletivo. Esperávamos mais propostas concretas para as crônicas mazelas do município,  do que detalhes sobre desvios de conduta  na vida privada, segredos de alcova, e narrativas ficcionais. Mas assim foi e , entre mortos e feridos em meio às escaramuças, salvaram-se todos. Imaginei que terminada a apuração o lado perdedor teria uma conduta mais republicana, afinal não se tratava de uma guerra pessoal, onde interesses próprios deveriam estar abaixo das aspirações e anseios  coletivos. Como louvor à Democracia esperava-se que o derrotado ligasse para o vencedor, lhe parabenizasse pela vitória alcançada no pleito e desejasse ao futuro prefeito sorte e empenho no destino do Crato nos próximos quatro anos. Afinal, mesmo não residindo aqui, ele é cratense e espera-se que deseje o melhor para sua cidade natal.

                        Infelizmente, não foi isso que ocorreu. A eleição até parece que ainda não aconteceu e os atritos e denúncias permanecem bem vivos na Mídia, num lenga-lenga eterno, numa lamentação que não tem fim, aquela mesma que tem sido a tônica na polarização dos últimos tempos e que redundou num clima golpista  e na  tentativa de golpe do 08 de janeiro. As urnas eletrônicas eram viciadas e programadas para eleger Lula, segundo a insânia que tomou conta do país após a eleição de dois anos atrás. Dali nasceu o clima propício para a depredação dos prédios dos três poderes, sabotagem com bombas, aliciamento de militares e financiamento empresarial de uma tentativa fascista de tomada de poder por força de armas.

                        A eleição, amigos, é bom lembrar, terminou na noite de 06 de Outubro. Como sempre ( nada existe de novo !) :  um candidato obteve mais votos e foi eleito, os outros perderam. O que há de estranho nisso ? A partir de primeiro de janeiro André Barreto é o novo prefeito do Crato por quatro anos. Será o prefeito da cidade e não apenas daqueles que nele votaram. Parabenizo, em nome da Democracia, os que participaram da festa democrática, apresentando outras opções possíveis, outras propostas diversas, isso engrandece a vida republicana. Nada mais horrível do que a unanimidade, o maniqueísmo. Mas são justamente as ideias que devem se confrontar, outras visões administrativas, outras formas de ver o mundo, a coletividade. Os que perderam têm todo o direito de fiscalizar, de cobrar promessas feitas em campanha e continuar semeando suas ideias e plataformas para colher em pleitos futuros votos que lhes elejam. Ao menos escondam e disfarçam a ira, o olho gordo, a decepção, as pragas , blasfêmias e finjam desejar o melhor para a cidade em que vocês vivem ou um dia viveram.

                         Vi críticas infundadas e raivosas contra o Ministro e ex-governador Camilo Santana pela sua participação decisiva no pleito. Ele apenas exerceu o direito universal de se posicionar politicamente na cidade onde nasceu. Outras figuras políticas aqui estiveram apoiando outros candidatos e ninguém os detonou: Ciro Gomes, Roberto Pessoa exerceram também um direito sagrado, tomando partido e nem cratenses tiveram a felicidade de ser. A grande celeuma é que o cratense Camilo Santana é um excepcional Ministro da Educação e foi, para o Cariri, certamente, o melhor governador de toda a história do Ceará. Isso é mérito seu e disso ele não tem nenhuma culpa. Sei que isso é devastador para seus adversários, mas assim é a vida!

                        Parabenizo todos os candidatos pela festa democrática de 06 de Outubro. Vencedor e derrotados. A campanha, no entanto, acabou e a regra é simples: quem tem maior número de votos governa, os demais batem palma, espanam a poeira, organizam os boletos e começam a fazer projetos para 2028. Vida que segue ! Alguém já disse que derrota em eleição só não é pior do que morte de ateu , porque sempre existe a possibilidade de ressureição num futuro próximo.  

 

Crato, 14 de Outubro de 2024