terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Quintal

E os anos se vão sucedendo,  sem que a gente nem perceba. As primeiras décadas parecem a lenta subida de uma rampa: dá para curtir a paisagem, prazerosamente dividir com os companheiros de jornada as sensações da viagem. De repente, chegamos a um  topo que é sempre imprevisível  e é como se o carro disparasse , ladeira abaixo. As imagens passam estroboscopicamente, os amigos se dispersam, como por encanto,  e a vida segue num estranho frenesi, enquanto esperamos  a beira do precipício e o ruflar inconsequente das débeis asas do Ícaro.   
                                   Pouco a pouco, ante a perspectiva do voo, nossa viagem vai se tornando mais e mais solitária. Os companheiros tomam estradas paralelas, seguem cursos inesperados, buscando todos um inexistente Shangri-lá. Como Fernão Dias Paes Leme, acabaremos cedo ou tarde descobrindo que eram falsas as almejadas esmeraldas. O tesouro terá ficado , talvez, espalhado pelas trilhas :  no bem que possamos ter partilhado, nas lágrimas que por ventura ajudamos a enxugar, nos etéreos momentos de simples e cristalina felicidade que dividimos com os que estavam no caminho,  ao nosso lado. Quando levantarmos o voo final, logo ali, na plataforma do despenhadeiro que nos aguarda   à frente, essas certamente serão as imagens que brilharão nos nossos olhos,   antes do impacto derradeiro nos imperceptíveis rochedos pontiagudos  do fundo do abismo.
                                   Abaixo, a visibilidade é pouca, a bruma feroz. O que nos espera naquelas abissais regiões , quando as asas se partirem e o remanso último   nos venha a sorver para  goela do tempo ? Alguns imaginam que , lá embaixo, exista um éden nos esperando, como conforto final do nosso mergulho : cascatas, música inebriante, paz.  Uns até garantem que nos será permitido voltar e tentar outras trilhas mais amenas e menos penosas, para outros  mergulhos menos turbulentos e  outras aterrisagens mais dóceis. Asseguram até que exista uma grande Torre de Controle invisível e poderosa ( com um estranho e enviesado censo de justiça)  que controla todos  percursos aéreos e decide sobre pousos, decolagens e colisões. Difícil compreender  as reais regras e objetivos  desse rali vital com partida “no nada” e fim “no coisa nenhuma”: sem louros, sem prêmios aos vencedores. À beira do pélago, são meros sonhos todas as conjecturas: apenas o vórtice é real.

                                   Dentro de cada piloto, no meio da vertigem, no entanto, existe um menino, escondido em algum cantinho do bólido. É preciso, na disparada, encontrar esse garoto. Ele nos reensinará  que a essência de tudo reside na brincadeira de hoje e não na perspectiva do Papai Noel que poderá ou não vir no Natal. Ele mostrará que  alegria está aqui ao alcance das nossas mãos: na simplicidade do pião de goiabeira e da bola de meia. Papai do céu está longe  a cuidar das suas estrelas, pouco nos interessa o que existe do outro lado do muro. Deixemos lá a vida com seus bichos-papões.  A felicidade está segura aqui no nosso quintal, brincando conosco de esconde-esconde .

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Pentelho de Capivara

                                                                               
          J. Flávio Vieira

Solidônio Canabrava tinha uma pequena loja de ferramentas em Matozinho.  Negociava  implementos  metálicos,  como dobradiças, armadores,  ferrolhos, correntes  pregos, parafusos, foices, martelos. Talvez tenha sido a proximidade e a dureza  desse material, que ele tanto manipulava no dia a dia, que terminou por impregnar seu temperamento de uma  a uma certa acidez e  petrificação. Tornara-se, aparentemente, do reino mineral, antes que o tempo o levasse a esse que é o destino final de todos os viventes. Era ríspido, direto, sistemático: com ele não tinha perreps. Intolerante, não aceitava perguntas bestas, arrodeios desnecessários, eufemismos, cerca-lourenços. Sua fama espalhara-se por  todos arredores da vila. Os que o conheciam , tiravam de letra a aparente estupidez de Solidônio e até cutucavam a onça com vara nanica, esperando a resposta pronta e carrascante como mourão de cerca. Os de fora, no entanto, tantas e tantas vezes se incomodavam com a rudeza do comerciante. Como se explicar  que quem quer  pegar marreca viver gritando :  xô ! Geralmente, depois de perguntas redundantes, como:
                                               --- Esse armador, seu Solidônio, é pra armar rede ?
                                               Vinha a resposta brusca e incisiva :
                                               --- Não,  Senhora ! Imagina ! Esse armadorzinho  é pra enfiar em cu de sabiá e pegar elas como se fosse anzol!
                                               E, imediatamente, tangia o perguntador peba, da sua loja, com o mote de sempre :
                                               --- Arreda ! Arreda, Dona  Empaia !
                                               Contavam-se as histórias de Solidônio  por toda redondeza, umas verídicas e a grande parte delas nem tanto : foram aparecendo folcloricamente, no fluxo ficcional da memória coletiva de Matozinho.  Uma  rezava que ele estava arrumando alguns rolos de arame farpado na loja, quando feriu a mão acidentamente, no ponta aguda do arame. Continuou a arrumação como se nada tivesse acontecido. Logo depois, novamente, repetiu-se a mesma tragédia: as pontas farpadas foram de encontro aos dedos de Soledônio. Ele não teve conversa : olhou firmemente para o rolo e disparou :
                                               --- Ah ! Já sei ! Tu tá querendo é carne, né ? Pois toma ! --- Enfiou a mão umas quinze vezes no rolo , quase perdendo todos os dedos.
                                               De outra feita, conta-se,  sentado, comendo mel de engenho, por duas vezes, o mel caiu e lambuzou sua longa barba. O velho não contou conversa. Olhou pra barba fixamente e logo sapecou o pires na cara , ameaçando a moita de cabelos:
                                               --- Ah ! Tu num é diabética , não, né?  Tu quer é mel, é ? Pois toma !
                                               Foi por essas e outras que dali , também, saiu o apelido do nosso personagem, embebido na grossura que lhe era a maior característica :
                                               --- Pentelho de Capivara !
                                                Claro que Solidônio não suportava o epíteto, nem sequer quaisquer palavras que por acaso lembrassem esse nome. Por isso mesmo  a alcunha pegou como catarro em parede.
                                               Semana passada aconteceu o inesperado. Canabrava tinha um pequeno engenho de cana de açúcar movido ainda a máquina a vapor. Uma das grandes moendas  quebrou e tiveram que suspender a moagem. Onde diabos encontrar uma estrovenga daquelas ? O maquinário tinha sido importado , muitos anos atrás, da Inglaterra, pelo avô de Solidônio. Os engenhos estavam quase todos de fogo morto. Em tempos de mariola, Coca-Cola  e chilitos, quem diabo queria comprar batida, garapa,  alfenim e rapadura ?  O eito de cana, no entanto, estava cortado e parar tudo era um prejuízo danado.
                               Canabrava soube que, em Serrinha dos Nicodemos, existia um velho que tinha um engenho similar ao seu e que estava parado há muitos e muitos anos. As moendas, segundo lhe tinham adiantado, estavam novas e a história é que O Coronel Balbino, o dono da fazenda,  falara , diversas vezes, na venda daquele mundo de ferro, inclusive para ferro-velho. Soledônio , então, chamou um velho choffeur de praça e resolveu ir negociar em Serrinha a compra da moenda com Balbino. Durante a viagem, no entanto,  o motorista o alertou. O coronel era um bicho do mato, cabra bruto e indomável como um chucro. Para se ter uma ideia, alertou : o apelido dele é : “Apito de Engenho” ! Será que o homem é bruto ?
                               Seguia a viagem e o motorista continuava atemorizando o velho Solidônio:
                               --- O Senhor é que sabe, seu Pentelho... ou...  Seu Solidônio . Ele vai dar um coice danado no senhor ! Pode esperar! Se eu fosse o senhor eu não ia não !
                               Canabrava, no entanto, neste mister tinha PHD e M.B.A. Não quis conversa, nem mostrou-se temeroso. Mandou picar viagem. Vamos simbora !
                               Tardizinha chegaram , por fim, nas terras de Balbino. Pararam defronte a casa alta, onde , após infindáveis degraus lá estava o coronel refestelado numa preguiçosa, assistindo aos últimos estertores do dia. Solidônio, desceu do jipe, mandou o motorista esperar um pouco , subiu calmamente a escada. E, sem delongas, fitou o coronel e perguntou ?
                               --- O senhor  é o coronel Balbino , se má pregunto ?
                                 O  velho, com aquela cara dura de cobrador , sem o fitar nos olhos, latiu de lá:
                               --- Sou sim, por que ?  E se não fosse,  você tinha alguma coisa a ver com isso ?
                               --- Né por nada não, Coronel ! Pegue sua moenda e meta no cu, joviu ?
                               Desceu os degraus, entrou no jeep e voltou pra casa, após a mais rápida negociação já registrada   nos anais do CDL  de Matozinho.


Crato, 16/12/14