sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Cinzas



  Despertou com aquele gosto arenoso na boca, como se tivesse ingerido todas as cinzas da quarta-feira ingrata. Os sons metálicos de um frevo distante e agora quase que ininteligível se dissolviam no ar. As ruas se recobriam com os últimos espólios da guerra dos quatro dias. Confetes e serpentinas se misturavam ao lixo comum , agora já sem asas e magia. Até os rapapés febris dos passistas do “Bacalhau do Batata”, o soldado de Pompéia da folia, pareciam já longínquos  e perfeitamente obsoletos.O mundo em volta ia pouco a pouco perdendo seu ar de festa e a vida crua, aguda como a ponta do punhal, voltava a preencher o espaço com um insuportável clima de normalidade. Os homens começavam a arrancar suas máscaras fictícias e, paulatinamente, iam cobrindo a face com aquelas outras mais reais e duradouras. Arlequins sem  Colombinas, Catirinas viúvas de seus Mateus , Super-Heróis sem espinafre, amolecidos pela Kriptonita cotidiana, perambulam sem destino num planeta estranho e desconhecido. A La  Ursas matracam em compasso ternário as suas matracas. Papangus já sem a proteção do anonimato retornam para casa a fim de  prestar contas a suas patroas da fuga do presídio doméstico por tantos dias  . Caboclos de Lança fazem a viagem de volta à roça agora já sem o luxo cerimonialista da túnica multi-espelhada e da farta cabeleira multicolor. Como se o ritmo da vida se marcasse agora pelo toque cadenciado, em mantra, do seu chocalho. Os Maracatus, respeitosamente, silenciam seu baque virado e retornam, religiosamente, aos terreiros.
                   Cuspiu no chão aquele gosto de cabo de guarda-chuva e ficou matutando : a vida se resumia exatamente àquilo : à Festa, à Celebração. A chama acesa e em brasa  da existência se consubstanciava no anarquismo inocente do Carnaval. Perdidos todos , sem saber de onde viemos e para onde marchamos, passamos a comemorar a esta louca e misteriosa viagem. Travestidos todos dos nossos desejos mais impenetráveis, abraçando desconhecidos, dançando com  figuras aparentemente estranhas e beijando línguas que jamais teremos capacidade de saborear outra vez. Tocamos outros corações com a vara de condão do etéreo e do fugaz e imprimimos um volátil ar de eternidade nos nossos sentimentos. A festa nos abre, quase que imediatamente, a perspectiva sombria do fim-de-festa. O pistão que ataca metalicamente o “Vassourinhas” é o mesmo que logo depois entoará o Toque de Silêncio. A vida se vai escoando assim mais entre bemóis que sustenidos. E adiante, por mais efervescente e estupenda que tenha sido a festividade, as máscaras cairão por terra, as serpentinas perderão sua sinuosidade ofídica e a vida terminará por cobrir-se daquela substância que preenche as gargantas e as quartas-feiras : Cinzas !  

22/02/08


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

As chancas de Alphonsus



                                      

                                               Alphonsus Publius Catarinus Maximus !  Esse nome, carregado de um latinório trava-línguas, poderia fazer parte da Mitologia Romana. Como diabos teria aterrissado em Matozinho ? Primeiro, é importante lembrar que o nosso Alphonsus  não trouxe esse epíteto da pia batismal. Nascera, sem sangue azul, molhando fraldas esfarrapadas, como muitos dos seus conterrâneos. Ainda adolescente,  enfurnara-se num Seminário, na capital,  e por muito pouco escapou da ordenação. Fora aluno exemplar e seus superiores vaticinavam-lhe uma brilhante carreira religiosa, coisa para arcebispo ou cardeal. Apaixonou-se, no entanto,  por um rabo de saia , filha de uma das copeiras do Seminário , e ela terminou arrancando-lhe a batina e  ele, em compensação, assungou-lhe  a saia . Partiu, então, nosso Catarinus para a dura vida de chefe de família, como comerciário. Nunca, no entanto, abandonou aquela mania de  sacristia, falava  apenas em latim vulgar e irritava-se por não ter interlocutores fora das hostes sacerdotais. Foi aí que resolveu, num penoso processo, mudar, em cartório,  o nome de matuto, Afonso Possidônio , de Catarina ( sua mãe) ,  para o pomposo : Alphonsus Publius Catarinus Maximus. E foi de posse desse novo registro civil que um dia aportou em Matozinho, carregando já uma récua de filhos. Com o dinheiro juntado, por muitos anos, estabeleceu-se por lá com um pequeno Armarinho e, já madurão, mudou-se para uma fazendola que adquiriu  e renomeou-a  de “Parnaso”.
                                   Em Matozinho,  teve que abandonar o latinório,  pois ninguém ali estava à altura da sua  sapiência lingüística. No Seminário versara-se em autores clássicos portugueses como Herculano e Castilho e sabia todo o “Eu” do nosso Augusto dos Anjos de cor. Negava-se, assim, terminantemente,  a falar em linguajar reles, fugia dos galicismos e anglicismos como o capeta de água benta. Erros de português, se legislasse, seriam punidos com prisão perpétua, salvo os de concordância verbal onde deveria se aplicar, sem remorso,  a pena capital. Publius mostrava-se, ainda, totalmente a favor da redução da maioridade penal: a partir de 12 anos, se desferir golpe de morte no vernáculo: galés perpétuas ! Ademais , nada de se resumir a uma centena de verbetes apenas, num idioma tão rico como o português:
                                   -- O  ” Caldas  Aulete” tem trezentos mil verbetes é pra se usar ! --- Costumava dizer  Catarinus .
                                   Até na emissão quase que automática de palavrões , nosso  vernaculista se policiava. “Filho da Puta” , virava  “Rebento de uma deusa de lupanar” ; “Maricas” , dizia “Pederasta sub-reperício “; “Vá para PQP !”  tornava-se nos lábios de Catarinus : “Diriga-se à Messalina que vos concebeu!” . Personagens famosos de Matozinho, também, ganharam denominações menos rasteiras : “Jojó Fubuia” terminou rebatizado por Johann Etanol; Janjão da Botica transformou-se em Jonh Pseudo- Esculápio.
                                   Dias atrás correu por toda Matozinho o ocorrido na Barbearia de Barba de Gato. Alphonsus lá chegou tentando encomendar um corte de cabelo. Dirigiu-se para nosso barbeiro, semi-analfabeto, com o seguinte palavreado :
                                   --- Ó Fígaro ! Quanto queres de remuneração pecuniária para desbastar estas excrescências córneas que se avolumam por sobre minha calota craniana ?
                                   Barba de Gato, mais perdido que cachorro em noite de São João, diante de tamanha catilinária, interrogou-o:
                                   --- Kumas ? Oxente , O homem  endoidou ou veio das estranjas !
                                   Contrariado, Alphonsus, raivoso, ameaçou :
                                   --- Se dizes por insipiência, perdoar-to-ei ! Se,  no entanto,  pretendes zombar da minha alta prosopopéia, desferir-te-ei um golpe com  este instrumento perfuro-contuso que o vulgo o denomina “bengala” , no frontispício da tua caixa craniana,  com tamanha impetuosidade, que ela  há de metamoforsear-se , em iníquos instantes, em meras cinzas cadavéricas !
                                   Registra ainda o folclore de Matozinho  uma outra epopéia  do nosso vernaculista. Pela manhã , ele despertou o filho caçula ,Dioclecianus Tertius, pedindo-o para ir até ao mercado público a fim de comprar uns cuscuzes  para o café da manhã. Convocou-o com este petardo:
                                   -- Tertius, prólio meu ! Levanta-te deste leito adormecente e caminha até àquele aglomerado humano que o povo denomina de mercado e compra-me massas côncavas a que o vulgo rotula de cuscuz, para que possamos saborear no nosso jantar matinal !
                                   Semana passada, a praça da matriz parou diante de uma cena inusitada. Alphonsus  buscou um engraxate, no intuito dar um trato nos seus pisantes. O problema é  que se tratava de uma figura popularíssima em Matozinho e que carregava um apelido  hilário : “Cu de Apito” . Imaginaram todos a dificuldade que teria nosso emérito vernaculista em tipificar o engraxate de forma mais erudita. Em alto e bom som, Publius aproximou-se  e , com sua inconfundível voz tonitruante, encomendou o serviço:
                                    --- Insigne polidor de pantufas ! Poderias genufletir-te ante mim e tornar luzidias estas minhas pré-históricas chancas !  Vinde,  ó Óstio anal chilreador !

Crato, 21/02/14

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Jojó & Juju





                               Jojó Fubuia  se tornara, a custa de muito desvelo e dedicação, o pau d´água mais famoso de Matozinho. E olhe que isso não era qualquer conquistazinha, não ! A concorrência não lhe dava trégua. O “Bar do Giba “ vivia atulhado  de pretensos  candidatos ao cargo , sem falar nos sítios da redondeza da cidade, onde o primeiro comércio a ser instalado  era sempre uma bodega, com sua cenografia típica : o balcão , os copos com fundo de lente de aumento, a bandeja de tira-gosto com siriguela ou caju e o garajau, logo atrás, apinhado com os litros de aguardente a granel.  No frontispício,  um pequeno quadro retangular avisando a sempre adiada venda a prazo :
                        --“Fiado só amanhã!”
                        Nem é preciso adiantar que este pequeno comércio se transformava  numa verdadeira academia formadora de concorrentes futuros do nosso Fubuia. Até porque, Jojó nunca fora pinguço com tempo integral e dedicação exclusiva. Era diarista sim, nas horas vagas, quando escapava, por fim, da barraquinha de venda de quebra-queixo e mariola que mantinha num dos lados da Praça da Matriz.
                                   A fama do nosso Fubuia não vinha apenas  da ingesta quase industrial das  canas fabricadas nos engenhos da região. Passara a fazer parte da paisagem normal de Matozinho. Virou figura ícone da cidade, principalmente por suas tiradas desconcertantes, suas irreverência e picardia. Mexer com nosso  cachaceiro,  quando do alumbramento etílico, comparava-se a cutucar marimbondo de chapéu ou inxu magro: meio caminho para a ferroada inevitável.  As histórias envolvendo o mesmo personagem contavam-se  às centenas nas cercanias da Serra da Jurumenha  e certamente foram elas que trouxeram fama  ao nosso Fubuia.
                                   Numa Missa de domingo o Padre Norzinger , vulgo Nó Cego, com a germânica rigidez que lhe era peculiar,  lançava  as suas ameaças terríveis para quem não seguisse ipsis literis o texto evangélico debulhado na homilia.  Com seu português engrolado , como se tivesse sofrido uma congestão, prometia as sempre temidas labaredas do inferno para os pecadores mais recalcitrantes. E quem, ali, não queria ir para o céu?  Quem? --Inquiria ele .
                        --Levante-se quem aqui quiser ir para o céu! -- Solicitou , teatralmente, Nó Cego, do alto do seu discurso tenebroso.
                        Todos os fiéis, imediatamente, se levantaram das cadeiras. A única exceção foi Jojó.  Com o barulho das chinelas, no levanta-levanta da platéia, acordou do cochilo,  no último banco da igreja.  Ainda andava anestesiado pela ressaca do porre do sábado.  Nó Cego divisou-o imediatamente, como única exceção à salvação proposta,  há poucos minutos e inquiriu-o , veementemente:
                        --- Tinha que serrr assim, nér seu Jojórr,  ! Sórr o Senhorr, alma perdida não querr a salvaçon ! Quando morrerr o senhorr não querr ir para o céu, non ?
                        Jojó, apesar da língua pastosa , não se enrolou:
                        --- Ah ! Quando morrer , eu quero ! É que o senhor perguntou, assim de repente,   quem queria ir para o céu e eu pensei que vossimicê  tava organizando a excursão era pra agorinha mesmo!
                        Tantas e tantas histórias engalonavam o book do nosso deodato que é sempre difícil, para um simples cronista de Matozinho, escolher as melhores  e mais palpitantes. Permitam-me, pois, exercer essa temível função, sujeitando-me às línguas mais ferinas da vila.  Pois aí vai o acontecido com D. Isaurina , uma das almas mais carolas e recatadas de Matozinho.
                         Isaurina sempre fora católica praticante, dessas de não perder missa sob qualquer pretexto. Não bastasse isso, envolvia-se ainda com a administração da paróquia, estando sempre à frente da Festa de Santa Genoveva, onde organizava os cordões vermelho e azul , os leilões, as quermesses. Além de tudo, enfrentava de punho serrado a Pastoral do Dízimo. Casara-se, há mais de vinte anos, com Juvenal dos Rosários , comerciante de produtos religiosos como velas, terços, santos e , claro, rosários. Os dois tornaram-se a sombra do Padre Arcelino. Pois a história se passa num fatídico domingo, quando, cedinho, Isaurina se dirigia à igreja para encetar os preparativos da missa das sete horas. Coroa meio passada, já tendo perdido as esperanças de um dia ser mãe, engravidara com mais de quarenta anos, o que considerava uma graça divina. O barrigão empinara e aí vinha ela, já remando, por volta do sétimo mês. Eis-que , nossa romeira, topa com Fubuia, capotado no meio da rua, usando o meio fio como travesseiro. Perto do templo, em pleno dia santo, nossa beata achou aquilo uma afronta e resolveu dar uma descascada no pinguço. Cutucou-o, com a ponta da sombria que levava na mão, por diversas vezes, até que Jojó, incomodado, abriu aqueles olhos de peixe morto para ela. Isaurina passou-lhe o carão:
                        --- Mas como é que pode, seu Jojó ! Tenha vergonha nessa cara! Capotado de frente à Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo ! Já sei,já sei !  Isso só pode ter sido é cana e muita !
                        Fubuia, com o mundo ainda ciclando seus movimentos de rotação e translação, tentou olhar, deitado , para a cara da sua interlocutora. A barriga de Isaurina quase que não lhe permitia observar  quem era a mandona, dona do mundo que ali estava a lhe dar aulas de boa conduta cristã. Quando , por fim, defrontou-se com a face quase que santificada de   Isaurina , sobressaindo-se com dificuldade da montanha da barriga prenhe, não resistiu :
                        --- E tu, santinha ! E esse buchão desse tamanho, não tem vergonha , não ? Já sei, viu ? Isso só pode ter sido é rrrrolaaa e muita !
                        Isaurina saiu que o rabo era um rei !
                        A mais clássica história do nosso cachaceiro --- e acho que aí, sim, há  unanimidade --- aconteceu no templo do nosso Jojó : O Bar do Giba.  Consta que Juventino lá entrou por mero hábito. Fora, por muitos e muitos anos, da turminha do quequéu. Tornara-se um dos grandes concorrentes do nosso Fubuia  nas artes garrafais. Claro que a concorrência não era tão fácil :  ora, nosso Jojó, era irmão de um outro grande copo : o Jeová da Palhoça. O mano de Fubuia tinha uma pequena palhoça, próximo ao Açude do Sabugo, onde vendia bebidas e as entornava com igual voracidade. Nos meses de inverno, a Palhoça  tornava-se o point mais badalado dos deodatos de Matozinho.
                        Pois bem, Juventino , acompanhado de tão má companhia, terminou  doente  e foi orientado por Janjão da Botica a abandonar o vício, pois   já estava aumentando a barriga e afinando os braços e as pernas: deve ser barriga d´água, vaticinou o boticário, meio caminho andado para a terra de pé-junto ! Juju , então, virou crente. Mesmo assim, não perdeu o costume de andar no Bar do Giba, afinal fora ali que fizera amigos e não agüentava Bíblia, oração e louvor, toda hora, não ! Naquele dia, quando Jojó o viu entrar, gritou imediatamente para  Giba:
                        --- Grande Juju ! Lasque aí uma lapada pra mim e outra para meu amigo , Giba ! Eu faço questão de pagar !
                        Enquanto Giba remexia os copos, Juventino, calmamente, explicou que não estava bebendo mais , parara de vez. Fubuia, com olhos esbugalhados, não compreendeu aquele aparente loucura :
                        --- Tá louco, Juju ? Você não tem mais idade para fazer uma besteira dessas , não ! Tantos anos bebendo e aprendendo e , de repente, parar  tudo ? Tu quer é lascar esse fígado, é , Juju ?
                        Juventino, então, disse que agora era evangélico, aceitara Jesus, tangera Satanás e não bebia mais nada. Só água ! E, enfático, fechou questão :
                        --- Agora, Jojó, eu sou crente, meu amigo. Sou Testemunha de Jeová !
                        Fubuia, então, rápido como Bill The Kid, apresentou sua inquestionável defesa das lindes etílicas:
                        --- Que besteira é essa, Juju ? Só Testemunha de Jeová ? Eu mesmo sou irmão de Jeová e bebo pra peste !  O próprio Jeová , pode ir conferir lá na Palhoça, bebe mais do que nós dois juntos ! E tu é apenas Testemunha dele ! E garanto que não foi nem intimado ainda prá audiência !  Nãoooo!

13/02/14

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Pijama de Bolinha



Há duas fases na existência em que o tempo  nos brinda com  a licença poética do despojamento. Na juventude nem precisamos nos preocupar com as regras sociais, com os ditames opressivos da moda, com a ditadura da etiqueta.  A criança faz xixi na rua e, banhada de inocência, faz brilhar os olhos de quem passa. O adolescente aparece chique e fúlgido vestindo apenas o short  jeans, a camisa de malha meio desbotada e o tênis. É que o desabrochar da rosa juvenil  traz consigo seus próprios encantos. A orquídea que brota no deserto ou em meio aos seixos  aparece mágica e encantadora aos nossos olhos, mais hipnótica que a que brolha no jardim, talvez pela  antítese ao se  contrapor  à sequidão agreste da paisagem. É assim que se fazem engraçados os arrufos infantis, a pueril percepção enviesada do mundo e até mesmo a contestação aparentemente irritante dos jovens, quando se deparam com os caminhos previamente traçados pelas gerações que lhes antecederam. Talvez, por isso tudo, lhes seja dado esse salvo conduto. O dourado da vida já lhes banha de alegria, de esperança e felicidade, qualquer acessório , qualquer adereço transforma-se, imediatamente, em supérfluo.
                        A  idade madura , a outra extremidade da corda, nos vai proporcionando, pouco a pouco, também essa imunidade. Aos poucos, também, nos vamos livrando das amarras da etiqueta social. O paletó já pode voltar ao guarda roupas; o  cromo alemão ganha sua merecida aposentadoria no  sapateiro ; o linguajar técnico deve ser substituído , dia após dia, pelo doce dialeto da rua e pelo palavrão. Itens essenciais voltam ao nosso convívio diário : o boné que põe um teto na pouca telha; a chinela que alforria os pés das galés do sapato; a bermuda que expõe sem remorsos as varizes e seus afluentes  e a brancura das canelas órfãs de sol. O confortável pijama de bolinha é indumentária que  não precisa ter manias de vampiro : já pode resistir aos raios do sol. Já não nos interessa os rígidos ditames da moda: a bermuda listrada pode muito bem combinar com o tênis e a meia social,  hirta subindo canela acima.  As auroras e os crepúsculos retornam, finalmente,  fazendo parte da nossa paisagem habitual. A lua volta a existir e, por incrível que possa parecer, tem fases , como toda bela mulher que se preza. O carro perde sua importância e só então se percebe o quanto do belo panorama ao nosso redor  ele nos roubou com sua velocidade e seu azáfama.  Fechando um ciclo, percebendo-se a flor que se vai murchando e tendendo a despetalar-se,  descobrimos que a vida pode ser mais simples, mais escorreita e que muito pouco das inomináveis amarras que a sociedade nos impingiu tem sentido e valeu a pena.  Nossa dourada juventude foi depenada pelo liquidificador da vida e, agora,  desnudos , enxergamos nossa nudez já sem a vergonha do pecado original.
                        Podemos, assim, empreender a viagem de volta:  o xixi embeberá novamente as fraldas;  o anda-já substituirá o automóvel;  o leite aparecerá de novo como alimento essencial e os amigos e familiares mais próximos se tornarão estranhos e distantes como já foram um dia. A palavra, pouco a pouco, sumirá da nossa língua trôpega e, finalmente, alcançaremos o ápice do despojamento. Um dia , por fim, contradizendo toda experiência que nos trouxe a maturidade, nos enfiarão o paletó em desuso e o cromo alemão já deportado, a mesma fantasia do baile passado, do ensaio para o nada e , hoje,  novamente , adereços mais que propícios para o carnaval dos vermes e a unção do pó.

07/02/14