quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A mala e a alça





                               Tardezinha. Beira de praia. O sol sangra distante ao som rítmico das ondas que se espedaçam na areia . Preamar. De quando em vez,  o chuá-chuá mântrico é entrecortado pelo agudo grito das garças riscando os céus. A moça sentara-se num banco e observava tudo, atentamente, como testemunha privilegiada,  o espetáculo. A paz e a beleza do mundo como que se transportavam para dentro dela: arrefeciam um pouco seus muitos conflitos interiores, como se lançassem água fria na fervura. De repente, um menino se aproxima da mocinha. Carregava lá seus dez anos distribuídos num corpo franzino, bronzeado,  vigiados por olhos vivíssimos. Trazia , embaixo do braço, uma pequena tabuleta onde prendera um pedaço de cartolina e, na outra mão, um crayon. Ela percebeu, claramente, pela conversa que se seguiu, que a necessidade o havia apeado cedo da inocência e das fantasias infantis. Parecia uma fruta que se tivesse colocado no carbureto pra antecipar o amadurecimento.
                               --- Moça, você não quer que eu pinte seu retrato ? São só dez reais e vai ficar muito bonito !
                               Por baixo da cartolina branca, trazia , então,  vários modelos já pintados anteriormente e que usava como publicidade. Apresentou-os pausadamente à cliente. A mocinha, de início, resistiu à investida, mas o menino carregava muitas artimanhas e técnicas de sedução.
                               -- Dez reais não é nada!  A senhora é tão bonita  que eu devia era fazer de graça !  Juro que pintaria,  se não estivesse precisando pagar uma continha na barraca  ali de seu Anfrízio!
                               De alguma maneira,  o garoto sabia que a beleza da paisagem, àquela hora,  imantava  todos de um sentimento de permanência, de eternidade. Como se o crayon tivesse a capacidade de tornar sólido,  o etéreo daqueles instantes,  fossilizar a efemeridade daquele momento mágico. Talvez, por tudo isso, a mocinha tenha acedido.
                               --- Tá certo ! Mas quero sair linda, viu ?
                               O pintor sentou-se no chão,  diante da moça refestelada no banco e, rápido, começou a esboçar os contornos do rosto, tendo no segundo plano:   algumas nuvens e um projeto de lua cheia.  Usava os dedos e o dorso da mão para espalhar, aqui e ali,  a tinta e uma borracha para eventuais correções. Conhecia os mistérios da profissão e percebia que toda mulher, nesse mundo, se acha mais bela do que aparenta. Entendia, pois, na sua psicologia pictórica, que a interatividade com a modelo é, sempre,  essencial no  resultado final.
                               --- Moça, seu rostinho é meio redondo, você não prefere que eu alongue um pouco ?  Acho que fica mais bonito!
                               --- Alongue, meu filho, tenho um complexo danado dessa cara de lua cheia...
                               O pintor , freneticamente, como um Pollock tupiniquim, esparramava a tinta na cartolina enquanto , meticulosamente, ia indicando possíveis correções que podiam melhorar a arte final.
                               --- Essa cicatrizinha no queixo, não é bom tirar ?
                               --- Tire, isso foi de um acidente que quero esquecer!
                               --- Se eu aumentar um pouco o busto, você vai ficar mais sensual !
                               --- Pois aumente !
                               --- Seu narizinho é charmoso, mas é um pouco chato. Posso arrebitar ?
                               --- Arrebite, vá lá ! Você presta atenção em tudo, né ?
                               --- Seu cabelo tá curtinho, acho que ficava mais legal se a gente botasse um pouco mais de volume, cobriria  mais suas orelhas que são um pouco cabanas...
                               --- Pois avolume,  eu quero é ficar melhor ! Já que não posso fazer  plástica, ao menos no retrato é possível, né ?
                               Em poucos minutos , com movimentos cada vez mais rápidos e sincronizados, o menino finalizou a obra. Assinou num cantinho : “Juvenal” e, logo abaixo, datou: “2013”. A menina observou, detalhadamente,  o quadro e gostou do que viu. Ali estava  justamente como gostaria de ser, sem um defeito sequer: linda, deslumbrante, poderosa, com um sorriso pendendo nos lábios. Pagou, elogiou o trabalho do artista e saiu para casa levando sua relíquia debaixo do braço. No outro dia,  mandou botar no quadro , com uma moldura antiga e dourada  e um passe-partout  bege.  Afixou  na sala de jantar,   logo acima do divã azul.  
                               Os dias se passaram e a menina começou a encafifar. O retrato lá estava lindo e deslumbrante, todo visitante admirava-se da beleza da obra, mas ,invariavelmente, seguia-se a pergunta fatídica;
                               --- Quem é ? Sua irmã? Uma prima ? Sua tia ?
                               De tanto responder e explicar, cansou. Resolveu tirar o quadro da parede. Chegou à conclusão que nós somos nós , não só por nossas qualidades, mas também por nossos defeitos.  Sem a alça,  a mala poderia  ser até mais bonita  e simétrica, mas seria apenas uma caixa. As pretensas deformações que nos tornam mais feios são , justamente, aquelas que nos dão a identidade , que terminam nos fazendo diferentes e únicos.

Crato, 24/10/13
                              

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A latrina no horário nobre




                                               Uma polêmica divide a classe artística do país: deve-se exigir ou não autorização dos interessados,   em casos de biografias ?  O Código Civil, atualmente, reza que qualquer cidadão pode impedir a publicação de biografias a seu respeito, se se sentir atingido na honra, boa fama ou respeitabilidade ou se se destinarem as biografias a fins comerciais. Atualmente, existem impedidas de publicação biografias de : Raul Seixas, Roberto Carlos, Guimarães Rosa.  A Associação Nacional dos Editores de Livros, no entanto, entrou no Supremo Tribunal Federal com uma ADIN ( Ação Direta de Inconstitucionalidade), justificando que a proibição das biografias não autorizadas fere frontalmente o preceito constitucional da Liberdade de Pensamento. Artistas se posicionaram, imediatamente,  em falanges diferentes. Um grupo importante chamado “Procure Saber” que inclui : Milton Nascimento, Erasmo e Roberto Carlos ,Chico Buarque, Caetano Velloso, Djavan, Gilberto Gil dentre outros, é frontalmente contrário à ação; já o GAP ( Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música) que engloba músicos como Frejat, Alceu Valença, Léo Jaime, Leoni e Dudu Falcão entendem que as biografias devem ser produzidas sem necessidade de prévia autorização.
                                               Não sendo advogado, percebo que o embate não diz respeito, apenas aos simples pontos levantados nas notícias : Direito à Privacidade X Liberdade de Pensamento. Há , certamente, junto a tudo isso a importante questão do Direito ao uso da imagem. Artistas célebres e famosos não se conformam, claro, que suas vidas sejam expostas sem sua autorização expressa e, mais, alguém (biógrafos e editores) lucre fartamente com isso , sem que nem um centavo cai na caixinha do artista.  Os defensores da liberdade biográfica dizem que  se o biografado se sentir atingido de alguma forma, poderá ir à justiça em busca de indenizações por danos morais ou por conta do uso indevido da imagem, sendo, no entanto, necessário lembrar a lerdeza da justiça brasileira. Muitos, por outro lado, já deverão ter falecido e já não terão voz para se defender e apresentar outras versões mais palatáveis que as apresentadas pelos jornalistas.  Além do mais, em caso de difamações ou calúnias,  a simples indenização não cobre o dano terrível muitas vezes causado pela veiculação de uma notícia escabrosa ( mesmo que verdadeira). Uma vez quebrado o colar de pérolas,  já não é  mais possível refazer e montar  todas as peças.
                                               Se a gente observar direitinho os dois grupos, são justamente os artistas mais  midiáticos e importantes do país que se posicionam contra o liberou-geral. Certamente, são eles que mais têm a perder nesta questão. Serão os mais biografados e suas vidas as mais especuladas e dissecadas. Quanto mais podres encontrados : mais mídia, mais polêmica e mais Best-Sellers.
                                               Vou meter minha colher nesse angu de caroço. Sinto-me a antítese do biografado. Minha vida não daria sequer um cordel e empacaria a venda em qualquer barraquinha de feira. Sem glamour, sem aventuras mais pitorescas, sem tramas rocambolescas, percebo minha clara isenção para falar do melindroso assunto. Não há vida que sejam livros abertos, amigos. Todos nós temos nossas páginas pregadas com goma arábica no meio do tomo. Se escarafunchar mesmo não existem heróis nesse mundo : nem santos, nem valentes, nem honestos sem máculas. Cada um de nós carrega o Dr. Jekyll e o Dr. Hyde bem pertinho. Às vezes, um simples e mínimo defeito físico nos tortura, uma deformidade de caráter, uma orientação sexual nos atravanca a vida. Mesmo a Liberdade de Pensamento, como bem maior, tem lá seus limites. É justo , por exemplo, em nome dela, estimular o preconceito? Defender o Nazismo ? Propalar o extermínio por fogo dos moradores de rua ? A privacidade de cada um de nós é um Direito Sagrado. O que se passa na alcova e no banheiro só a mim interessa. Ninguém tem o direito de invadir este espaço, sem meu franco consentimento e tornar públicos segredos que só a mim interessam. Isso não é Bulling ?
                               As histórias trágicas envolvendo até mesmo Memórias de Família são corriqueiras. Pedro Nava, o maior memorialista brasileiro, fala da quantidade de inimigos que arranjou na própria parentada, quando começou a traçar o perfil pouco abonador de alguns ascendentes. Recentemente, um escritor na região , num livro sobre a sua vida, mostrou uma visão própria e desabonadora do próprio pai: foi motivo suficiente para a intriga de irmãos e sobrinhos. Imaginem tudo isso escrito por terceiros e,  mais: além de chafurdar na latrina ainda ganhar dinheiro com isso?  Como vocês reagiriam lendo a biografia do pai ou avô com detalhes sórdidos de crimes cometidos, de trapaças realizadas às escondidas, de distorções sexuais impensáveis , mesmo que sabidamente verdadeiras ?
                               Há países de primeiro mundo como França, Estados Unidos, Reino Unido e Espanha  onde as biografias não autorizadas são permitidas, mas as indenizações são prontas e rápidas àqueles que sofreram algum tipo de difamação. Aqui, o destino dos caluniados e difamados seria  seguir uma procissão enorme de recursos a processos, enquanto o esterco espalhava-se ventilador afora. Leis de primeiro mundo pressupõe-se sejam aplicadas com justiça do mesmo jaez.
                               Posso parecer retrógrado, mas continuo defendendo que o diálogo entre mim e a latrina não precisa ser filmado e veiculado como atração no horário nobre. 

18/10/13

A Delicada Trama armada na IX Bienal do Livro de Pernambuco











terça-feira, 1 de outubro de 2013

Gol de Bicicleta







“Quando eu vejo um adulto em uma bicicleta,
eu não perco a esperança na raça humana.”
H.G. Wells


Desde as mais priscas eras, o homem buscou, desesperadamente, maneiras de ampliar seus horizontes de mobilidade.  Um bípede perdia de goleada para as outras inúmeras espécies que com ele disputavam os alimentos. Além de tudo, num mundo tão hostil e sujeito às mais variadas alterações climáticas, o poder de deslocamento fazia-se diretamente proporcional às condições de sobrevivência. A invenção da roda levou o Homo sapiens a um pedestal até então inimaginado. E consta que há 2500 anos atrás, o chinês  Lu Ban inventou um dos meios de transporte mais populares da nossa história: A bicicleta. No ocidente , o Barão germânico Karl Von Drais, no início do Século XIX, montou o primeiro rudimento da Bicicleta moderna : o Celelífero que foi, pouco a pouco, sendo aperfeiçoado e já em 1829 se registrou a primeira Corrida de Bicicleta de que sem tem notícia. No Brasil , a novidade chegou no finalzinho do Século XIX , trazida pelos imigrantes europeus de Curitiba.  A paulistana Veridianada Silva  Prado construiu o primeiro velódromo do país, em São Paulo, na  Praça Rosevelt, na Consolação.  Até então, os veículos eram importados, na década de 40 , do século passado, no pós guerra, começamos , por aqui, a fabricação das nossas próprias bicicletas.
                                   Aqui noeram importados, or aqui, a fabricaçerio veleta de que sem tem notorizontes de mobilidade.  Crato,  observando as fotos antigas, não se percebe como freqüente a presença da bicicleta entre nossos hábitos cotidianos. Possivelmente, nossa geografia acidentada, com terrenos cheios de vales e depressões, não tenha propiciado uma disseminação maior desse meio de transporte, com exceção, talvez, dos moradores da Chapada do Araripe, mesmo assim com um uso mais utilitarista do que esportivo.  Após a nacionalização da produção,  já no pós-guerra , a acessibilidade da bicicleta possivelmente se tornou maior . Desde 1948 , temos a Prova Ciclística  de 21 de Junho aqui na nossa cidade. A informação é do nosso  Huberto Cabral. Se há dúvidas, amigos, se foi o Pedro Álvares  quem descobriu o Brasil, não resta qualquer discussão a respeito de uma outra verdade histórica: foi um outro Cabral, o Huberto, que descobriu e vem descobrindo o nosso Crato. Nos anos 60, houve um grande impulso no ciclismo entre os jovens de minha geração, aqui , possivelmente,  pela passagem de um famoso ciclista de Petrolina  – Souza Filho—que veio fazer uma prova de resistência na Praça da Sé, encantando e influenciando toda garotada.
                                   Nos últimos anos, tem se percebido uma grande população de ciclistas esportivos na nossa região. A Chapada do Araripe, nos fins de semana, se vê apinhada de um sem-número de esportistas das mais variadas camadas sociais, com  bicicletas e acessórios  modernos. Importante lembrar que esse novo pico  na disseminação da modalidade esportiva entre nós, começou por volta de 1986. Alguns jovens cratenses – Ernesto Saraiva, Hercílio Figueiredo, Rui Borges --  criaram   a atividade de “Moutain  Bike” , imantados de uma natural consciência ecológica. Preocupavam-se com a devastação da nossa Chapada e da necessidade de educar os caririenses quanto à necessidade diuturna de preservação. O movimento cresceu, ganhou adeptos e, em 1996, por fim,  já com o poder pensante de outros sócios beneméritos : Ricardo Borges, Ney Reny, Ildemário Júnior, Newton Machado, Ricardo Rocha, Alziane Diógenes, Cézar Bandeira, fundaram a “Eco-Biker´s”. A entidade tem, como logomarca , uma Flor de Pequi e, hoje, congrega em torno de 1300  esportistas. Eles mostram, com orgulho, os resultados de um trabalho espontâneo e profícuo : o Tricampeonato Cearense de Moutain Bike 1999/2000/2001 e o Bicampeonato  Nordestino 2002/2003. Atualmente,  a entidade luta pela implementação da Semana da Bicicleta em nosso município entre 16 a 22 de Setembro, culminando, pois, no Dia Mundial sem Carro; além da promulgação da Lei  2844/13 : a chamada Lei das Ciclovias.
                                   Como parece ter se tornado uma regra nesse mundo, as grandes iniciativas  partem, geralmente, de pessoas simples e visionárias. Sem os anteparos das convenções, dos liames políticos, das ganâncias de Mercado, elas conseguem ver adiante da linha do horizonte. O Crato é detentor de um imenso capital ecológico e teima em não entender esta riqueza. Pomo-nos a macaquerar os municípios vizinhos em busca de uma vocação, quando ela brilha  à nossa frente a todo momento na forma de Ecoturismo. A preservação da Chapada do Araripe é uma lástima. Nossas fontes viraram patrimônio particular; nossos rios tornaram-se  esgotos a céu aberto; caminhões carregam madeira todo  santo dia, ladeira abaixo; vende-se carvão em quase toda esquina; vans fazem da Serra do Araripe aterro sanitário. Não existe qualquer educação ambiental para os esportistas que se aventurem pela Chapada. Caberia ao menos uma mínima ação política no sentido de dar uma infraestrutura mínima a esta atividade. Medidas como: demarcar as trilhas , especificá-las e sinalizá-las;  estabelecer uma educação ambiental básica aos visitantes, segurança e primeiros socorros;  regulamentar um comércio mínimo de água, sucos, energéticos, frutas; alocar lixeiras em pontos estratégicos e fazer coleta regular do lixo; incentivar competições esportivas ; formar e educar  guias para os passeios; criar ciclovias; estabelecer parcerias com a URCA, a FLONA, o IBAMA, Fundação Araripe.
                                   O Crato, por inteira falta de foco, vem perdendo de goleada esse  jogo para as outras cidades do Cariri. A  Eco-Biker´s  vem mostrando, há quase vinte anos, que é possível virar esse placar ,  fazendo um gol de bicicleta.

01/09/13