sexta-feira, 28 de junho de 2013

Tributino Cover



Calixto Tributino retornou a Matozinho já velho , com a cara parecendo um papiro da III Dinastia. Saíra ainda menino, perambulara pelo mundo,  e terminou por se fixar em Codó no Maranhão,  onde fez a vida e de lá trouxe histórias para colorir a opacidade da sua velhice. Ainda rapazote,  metera-se com roubo de gado em Matozinho -- coisa de adolescente, diz-se hoje, mas que naquelas brenhas considerava-se crime inafiançável, no mínimo apenado com tiro de trabuco no toitiço. Por isso mesmo,  os pais de Calixto anteciparam sua arribação inevitável. Ele partiu com passagem apenas de ida e, como bom sertanejo,  não mais deu notícia. Parte de uma récua infindável de filhos, quebrada a casca do ovo, o matuto percebe que é hora de alçar vôo: vira  uma página desta vida que não tem marcha ré.  Todo adeus, afinal, carrega consigo aquele gosto de nunca mais. Quando Tributino resolveu retornar,  já tinha o ninho sido desfeito, os pais e irmãos haviam obedecido ao inevitável chamado da velha da foiçona. Ali encontrou poucos amigos da sua geração. Não trazia no matulão muitos recursos, apenas um dinheirinho da venda da casa em Codó que usou para comprar uma outra em Matozinho,  e uma aposentadoria minguada do FUNRURAL.
                                   Ninguém nunca compreendeu bem porque Tributino voltara. Toda uma existência plantada em Codó, onde, certamente, devia ter mais amigos sobreviventes que em Matozinho, alguns filhos residindo por lá e outros espalhados mundo afora, esperava-se que seu outono no Maranhão fosse menos rigoroso do que na sua cidade natal. O retorno ,possivelmente, teria alguma relação com sua fuga e sua folha corrida na adolescência. Calixto , homem de bom coração , deve ter carregado eternamente consigo aquela mácula, aquele sentimento de culpa. O filho pródigo voltara para se redimir : não sou nada daquilo que vocês estão pensando!  Aposentado, para espairecer e não ficar numa cadeira de balanço, de butuca esperando a morte, Calixto meteu-se a marchante de bode. Abatia uns cabritinhos nos fins de semana e saía vendendo a carne, numa burrinha, rua afora. Acompanhava-o Fantico, um cachorrinho pé-duro, amigo inseparável e que chegara com ele na viagem de volta.  A profissão não se mostrava das mais glamorosas e,  claro , sem muitas vitórias para se vangloriar, derrotado em quase todas as batalhas que empreendera,   teve que criar um personagem, uma espécie de Tributino Cover,  um ser quase mitológico  impregnado de poderes mil: uma espécie de Ulisses Matozense. Dia a dia, entre uma rodinha e outra nas calçadas, debulhava suas peripécias em terras maranhenses. E eram muitas e muitas estripulias para um super-herói só.
                                   Nosso personagem dizia-se trabalhador incansável. No maranhão trabalhava no roçado o dia todo e, não bastasse isso, mandara fazer um candeeiro de cinco bicos  que instalara com uma alça de flandes  na cabeça, possibilitando-o, com a iluminação,  trabalhar na lavoura também à noite. Um dia, contou ao Coronel Serapião Garrido que as roças de Matozinho eram muito pequenas. Lá em Codó , num roçado pequeno, ele situara dez cuias de gergelim. O Coronel fez um cálculo rápido das covas necessárias para se colocar a quantidade imensa das pequenas sementes de gergelim que perfaziam as dez cuias e , sem arrodeios,   desconfiou da empreitada.
                                   --- Você deve estar enganado, Calixto! Não pode ter sido dez cuias não! Eita lapa de roça danada ! Se fosse, você teria vindo plantando do lá e passava por aqui ainda semeando...
                                   De pouco estudo, Calixto procurava  alguém para ditar as cartas que enviava aos filhos. Apesar da pouca instrução , gostava de ser pomposo nas suas missivas, não interessando muito a mensagem a ser enviada. Queria, no fundo, impressionar  os circunstantes e eram comuns os períodos truncados , a dubiedade de algumas frases, o emprego atravessado de algumas palavras.
                                   --- Escreva aí Giba !   
                                   “Caro Laurentino,
                                   Relativamente, com relação à bausa do procuro do comerço, ponto. Os atavios, os loro e os talabardão das cangaia tão mais destiolado que os pau de sebo das quermesse de Padre Arcelino, benza-te-Deus, quanto mais, principalmente, vírgula...”
                                   Matuto olhava aquele discurso de queixo caído:
                                          --- “Vôte ! Esse Tributino devia ser era adevogado”!
                                   Como sempre, Calixto tendia a levar suas estripulias para o ramo da caça e da pesca. No item pesca, os peixes maranhenses , segundo nosso marchante, ganhavam do pirarucu em tamanho. Calixto abria os braços nas narrativas para dar uma idéia apenas do tamanho da cabeça das traíras que desenovelava dos landuás de lá que mais pareciam empanadas de circo. Um dia, quando começou contar uma dessas pescarias, o soldado severo estava no meio da platéia. Avançou, calmamente, e colocou algemas nos punhos de Calixto, na tentativa de evitar a medida desmesurada do peixe que viria com a abertura dos braços logo a seguir. O pescador algemado não perdeu o fio da história, quando chegou nos finalmentes : “Era um peixão desse, desse... as mãos atadas impediam-no de apontar o tamanho. Ele então, usou um artifício. Fechou os dois polegares junto com os dois indicadores, fazendo duas rodas grandes e completou:
                                   --- Ói o tamanho dos ói do bicho !
                                   Na seção caça,  Tibutino dizia sempre que Fantico, seu companheiro de caçadas, tornara-se um verdadeiro exterminador de onças pintadas no Maranhão. Saiam à noite, soltava o cachorro e rapidamente o pé-duro fazia alarde: acuava uma onça , ela temerosa subia em alguma árvore, ele vinha, apontava a soca-soca, era a espoleta cortar e a bicha cair baleada. Aí, Fantico pulava em cima e estraçalhava o felino. Ficara conhecido o cachorrinho por lá, pela sua valentia, já carregava no cartel mais de duzentas maracajás trituradas pelos seus dentes.  Calixto enjeitara dinheiro muito nele, chamavam-no naquelas brenhas  de “Traça Onça”, afirmava o caçador impávido e orgulhoso.  As proezas de Fantico eram difíceis de ser testadas, uma vez que as onças quase não mais existiam por ali. Uma ou outra fora notificada na Serra da Jurumenha, comentava-se que a caça predatória tinha praticamente exterminado a espécie . Nosso caçador, no entanto, afirmava, de cátedra ,que a escassez devia-se ao medo de Fantico. A fama do cão se espalhara em toda a região e as bichas fizeram bunda de ema !
                                   Um dia, soube-se de uma novidade na cidade. Um caçador armara uma armadilha e pegara duas onças : uma preta e outra pintada. Colocou as duas em jaulas e trouxe a Matozinho, como um zoológico particular. Alugou um puxado da Bodega de Giba , cobriu a porta com uma empanada e ficou lá, cobrando ingresso para quem quisesse ver. O velho Serapião Garrido soube da novidade antes de Calixto e resolveu pôr a limpo a veracidade das astúcias de Fantico. Esperou o caçador na entrada da cidade e convidou-o  para  uma surpresa. Tirbutino segui-o curioso. Fantico , como sempre, veio atrás, no rastro de dono. A bodega de Giba ficava do outro lado da praça da matriz, confrontando a Igreja . O sacro e o profano em vis-à-vis. Serapião e Tributino cruzaram a praça. Só , então, perceberam que Fantico havia empacado no meio : orelhas empinadas, ventas dilatadas e olhos assustados. O faro privilegiado já o havia alertado do perigo iminente. Serapião pediu , então, a Calixto para estumar o cachorro. O caçador estralou os dedos, assoviou, chamou : “nego, nego, nego...” e nada ! Fantico, olhos esbugalhados,  permanecia imóvel. Garrido quis saber porque Fantico andava tão sem apetite. Continuaram, pagaram os ingressos e entraram. As duas onças , enormes, lá estavam, com aquele cheiro forte de felino e dentes e rosnados  ameaçadores. Serapião deu um passo atrás e observou , ao longe, Fantico que não tirava os olhos deles. O coronel, então, balançou a empanada de repente. Fantico esturrou! Quase não conseguiu, a princípio,  fazer a largada porque deslizou no próprio mijo, saiu, rua abaixo, juntando perna com cabeça. Nunca mais se soube dele. Calixto ficou meio triste, mas não perdeu a pose:
                                   --- Deve ter voltado para o Maranhão! Decepcionou-se com esses gatinhos aqui de Matozinho! Deve ter dito : Taqui, ó ! Eu mijo é prá vocês !

28/06/13

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Do pijama à gravata



Em meio ao mundo utilitarista  em que vivemos, somos, continuamente, impelidos a crer que as cidades  são constituídas de prédios, de ruas, de carros, motos, muros e paredes. Ledo engano, amigos !  Uma peça de teatro, se se reparar bem , não  se resume apenas ao cenário. O que a faz grandiosa ou medíocre é  o doce tecido do seu enredo, a maneira sutil e poética com que os personagens desfilam, dialogam, interagem. É da leve trama das relações humanas, do bordado fino das aproximações, do macramê tantas vezes grosseiros  das suas  dissensões de que são fiadas as vilas e as cidades. Cada um de nós é uma linha nesta delicada trama. Alguns têm capacidade menor de insinuar-se entre os outros fios e se puem mais facilmente. Outros , tangidos pela agulha do destino, banham-se de cores, mergulham no coração do tecido , em sucessivos vai-e-vem e terminam por fazer brotar o bordado único que embeleza a toalha da vila e da vida: a casa, o lago, o sol, a árvore.  Sem eles, a urdidura do pano permaneceria na inércia da opacidade, na insulsa imacuidade do branco.
                                   No último mês ,  o Crato  viu esmaecer-se um pouco sua aquarela. A mão implacável do tempo desbotou, um tanto,  o colorido do nosso estampado.  Claro que o pano se vai puindo e outros desenhos vão surgindo nas extremidades, no faz-desfaz das ondas das horas. Mas doe-nos imaginar que os ornatos que nos acostumamos a admirar,  jamais os veremos de novo com as mesmas cores e as mesmas nuances. Um dos fios chamava-se Antonio Luiz Barbosa e era querido por todos. Funcionário aposentado do Banco do Brasil especializara-se na fina arte de fazer amigos. Um deles havia sido o Dr. Antonio Gesteira , uma das mais mitológicas figuras da terra de Frei Carlos e que nos deixara há mais de cinqüenta anos. Antonio Luiz fez-se o guardião da memória do nosso carismático cirurgião. Deixou, ainda, o mais completo trabalho que conheço sobre a vida do amigo, escrito num português correto e erudito, típico de quem havia perlustrado os umbrais do velho Seminário São José. Boêmio, amante das noites e tardes da  sua terra, compunha um grupo dileto de companheiros em que, estranhamente, o principal atrativo que os unia era a conversa, a palestra, a fofoca e não outras libações. Essa trupe engalanou as rodinhas da cidade por muitos e muitos anos e trazia nas suas hostes   membros ilustres e queridíssimos  : Caio Teles, Felicinha, Tália, Márcia, Regina Helena, Telizito, Dolores Milfont, Antonio Primo, Dionê e Natércia Pinheiro. Todos ainda tão presentes entre nós, dispersos que foram pela  inexorabilidade do tempo. O Crato fica menos colorido quando se percebe que toda uma trama rica  do bordado se esfumaça.
                                   Nestes dias, outros passamanes se desfizeram. Partiu o mais importante poeta-cronista caririense da atualidade. Mestre da poesia de circunstância, úmido do fino humor e sarcasmo da poesia popular, nosso poeta fez-se o fino crítico dos nossos costumes e da vida cotidiana cratense nos últimos cinqüenta anos. Chamava-se Zé Landim. Esportista nos anos áureos do futebol de salão cratense, fora um goleiro inspirado e admirado. Alma boêmia, tinha a noite como irmã , parceira e cúmplice. Seresteiro incensado, sua voz bonita e afinada inundou as serestas caririenses e saudou nossos luares. Interessante figura humana, Zé Landim fabricava amigos com a mesma facilidade com que se enfunava de arroubos os mais pueris, talvez porque , no fundo, nunca tivesse deixado crescer a criança que carregava consigo e norteava seus passos de artista.  Zé foi um ser múltiplo mas , certamente, era o fino bardo da poesia circunstancial que mais se lhe sobressaía. Era um craque. Vejam, por exemplo, as músicas  de campanha eleitoral. Alguém já viu coisa mais besta e banal ? Alguém se lembra de alguma da última campanha? Pois bem, há quarenta anos, Zé Landim fez um paródia para a campanha eleitoral de Pedro Felício que ainda hoje, pasmem vocês, está na lembrança de toda uma geração : 

                                   “O Crato, já foi princesa
                                   A todo mundo  causava admiração
                                   Seu Pedro, na prefeitura, prá todo mundo
                                   Deu show de administração...”

                                   A maior homenagem que podemos lhe fazer, é lembrar algumas dessas crônicas poéticas que  ,se não escritas, tangidas pela volátil lembrança da oralidade, terminam por se perder na voragem do tempo. Pois vamos lá ! Grande Zé Landim!
                                   Zé fora dileto amigo e correligionário de um dos mais populares políticos do Cariri. Sabe-se lá porque, uma grande confusão aconteceu. E, em se tratando do nosso  poeta, não se fazia necessário muito para acender o estopim curto e inflamado. A intriga perdurou por muito tempo. Um dia, estava ele na rua conversando com um amigo comum, quando uma caminhonete parou colada aos dois. Era o político. Conversou com o amigo, mas como se dirigisse aos dois, pretendia, de alguma maneira, acabar com a infuca que já durava anos . Zé Landim fez ouvidos de mercador. Vindo da fazenda, após os cumprimentos, tirou o político dois queijos e presenteou os dois. Ao sair, Zé , desconfiado, cedeu o queijo ao amigo e à tarde mandou-lhe  uma quadrinha que , genialmente, resumia o encontro :

                                   “A velha cidade do Crato
                                   Doutras plagas é diferente
                                   Lá se dá queijo prá rato
                                   Cá rato dá queijo a gente”

                                   Zé Landim freqüentava, também,  com amigos de boêmia,  a bodega de uma outra figura adorada em Crato. Era ali numa das esquinas da Nélson Alencar e o proprietário :  Heleno Feitosa, um desses desconhecidos heróis do cotidiano. Heleno trabalhava de sol a sol. Almoçava no próprio estabelecimento, não arredava o pé  e com aquele pequeno comércio, trabalhando diuturnamente, formou todos os filhos e os fez cidadãos de bem. Um dia, Zé notou que Heleno ficava todo tempo sentado e com um pé inchado e em cima de um outro banco. Perguntou-lhe se o  tinha fraturado em algum acidente. Heleno, então, informou-lhe que se tratava de um esporão de galo que estava nascendo no tornozelo e incomodando como o diabo. Pouco depois, com o poder de síntese dos grandes poetas, Zé resumiu tudo numa Nona inesquecível :


                                   “Heleno Sales Feitosa
                                   Leva uma vida penosa,
                                   Todo dia faz serão,
                                   Trabalha que só um louco,
                                   Todo tempo prá ele é pouco
                                   E mal engole o pirão.
                                   Trabalha o ano inteiro,
                                   Não tira o pé do poleiro,
                                   Já tá nascendo esporão.”

                                   Uma outra história envolve nosso poeta e um outro mito cratense: João Aires de Aquino, conhecido por todos pelo carinhoso sacro-monárquico apelido de Dom João. Nosso quase rei ou bispo era proprierário de um dos mais famosos bares da cidade e que, pelo próprio temperamento algo difícil do dono, tornara-se quase um clube fechado. Zé Landim era um dos membros titulares e  vivia a cutucar onça com vara curta, aperreando o proprietário aqui e ali, esperando a reação. Um dia saiu na cidade a notícia que D. João havia sofrido um acidente de carro e estava ainda em recuperação, todo enfaixado. Zé Landim visitou-o e, depois, resumiu, assim o ocorrido :


                                   “João Aires de Aquino
                                   É um menino traquino
                                   E mexe com todo mundo,
                                   Num desastre de veículo
                                   Quebrou o par de testículo
                                   E as quatro pregas do fundo”

                                   D. João agüentou firme os primeiros versos, mas no final, saltou do cavalo :
                                   --- “Pensa queu não sei o que você tá insinuando, rapaz? Você tá querendo dizer queu só me restaram quatro, né, seu filho duma mãe?
                                   Sem Zé Landim e Antonio Luiz desbota um pouco a alma encantadora da cidade.  O Crato fica mais chato e menos gaiato:  tira o pijama e veste a gravata.

14/06/13

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Lua cheia





O padre Adalmiram Vasconcelos, pároco de Farias Brito, vem sendo seguidamente imputado de polêmico pela população caririense. Conheci-o , recém ordenado, ainda como capelão do Hospital São Francisco , e sempre me pareceu um religioso aberto, cordato e tranqüilo. Em 2010, ele  trabalhando em Santana do Cariri , tomara medidas firmes no que tange à festa da padroeira daquela cidade que vinha tomando formato de um “Carnaval fora de época”. Blocos, trios elétricos, camisetas com alusões indecorosas e incentivo maciço às libações alcoólicas. Na época, com ajuda do prefeito e Ministério Público, criou regras e condutas na tentativa de imprimir um sentido mais cristão à festa religiosa. Sofreu , em represária, perseguições de grupos jovens locais,  disseminando-se o boato de que, à noite, o nosso pároco uivava à lua e virava lobisomem. Em 2011, o padre assumiu a paróquia de Nossa Senhora da Conceição em Farias Brito. Em setembro do ano passado , solicitou aos fiéis da Serra do Quincuncá para não soltarem fogos de artifícios na missa em sufrágio da alma de Padre Cícero. Adelmiram acreditava que haviam sido os fogos que causaram um incêndio que terminou por devastar mais de dez quilometros da serra, com grave impacto ecológico. A população afeita ao fogaréu e ao pipoco , não viu com bons olhos a medida. Agora, por fim, explode uma outra polêmica. Aberta a Festa de Santo Antonio em Cariutaba, o sacerdote recorreu aos serviços do Ibama e da polícia para impedir o corte de uma árvore gigantesca , feito anualmente, desde o Século XIX, para se usar como pau da bandeira. Fincou a bandeira do santo casamenteiro na torre da igreja. Proibiu ainda o consumo exagerado de bebidas . As festividades vêm acontecendo do lado de fora do templo: por medida de segurança,  Adelmiram mandou passar um cadeado na capela. A revolta dos  moradores, num local tradicionalmente sem muitas atrações,  parece visível e perturbadora.
                                   À luz da razão , é difícil confrontar as medidas saneadoras e corajosas do nosso padre. É um verdadeiro absurdo se cortar, anualmente, uma árvore antiga, com o fito único de se montar um suporte de bandeira. Essa medida, amigos, fere não só princípios ecológicos, mas também legais. Sem falar no contra-senso que é uma religião que deve defender intransigentemente a preservação da vida nas suas mais diversas formas, servir de instrumento para a destruição. Que pensaria disso São Francisco de Assis ? Por que não mantemos a mesma tradição , utilizando sempre o mesmo mastro ? Por outro lado, que têm de sagradas as nossas festas religiosas? As estatísticas de violência na Semana Santa são, historicamente,  muito mais catastróficas de que as do Carnaval. Há shows nababescos  toda  Sexta Feira Santa em Gravatá, Pernambuco, regados a droga, sexo e Rock´n Roll. A Festa do pau da Bandeira de Barbalha  é similar aos rituais de fertilidade pagãos, com seu símbolo fálico reverenciado em cada esquina. As festividades da Baixa Rasa ,aqui em Crato,  não juntariam tanta gente sem a música, o aguardente e a paquera, ingredientes básicos de qualquer solenidade profana que se preze. Padre Adalmiram traz consigo esta pureza quase missionária, remontando às raízes do Cristianismo. Com coragem, cumpre a responsabilidade que se espera de um pastor : ver adiante, perceber novos caminhos por trás das lentes embotadas da aparente normalidade cotidiana. Nada, no entanto, contra a corrente, será massacrado pela população, pela política e mesmo seus pares não compreenderão sua Cruzada.
                                   O Sagrado e o Profano sempre estiveram umbilicalmente ligados em todas as nossas comemorações sacras. Talvez os brasileiros, por natureza, não sejam muito afeitos aos liames dos ritos. Pela nossa própria colonização, nossa religião é, também, profundamente miscigenada. Comungamos na igreja, mas freqüentamos o Centro Espírita, vez ou outra comparecemos ao Terreiro, acreditamos em reencarnação, usamos umas folhinhas de arruda , alguma figa, somos fatalistas, não comemos carne de porco e por aí vai. Nas festividades religiosas rapidamente entra um atabaque, um violãozinho, uma sanfona , que puxa uma caipirinha. Rapidamente os cultos ultrapassam as fronteiras do sagrado. Por outro lado, as cidades tomam as festas como suas( o turismo é politicamente cada vez mais atraente e uma fonte de renda importante), entram nas agendas turísticas dos municípios , parte-se para divulgação, procuram-se atrações de massa como isca e, de repente, a festa é festa e não mais culto. As entidades religiosas, por sua vez, pragmáticas, beneficiando-se com o aumento da arrecadação , fecham os olhos para o crescimento absurdo do profano, afinal  no Brasil tudo sempre acaba em festa.
                                   Acredito, no entanto, que não podemos apenas , simploriamente, lançar no povo brasileiro a culpa pela propensão natural à esbórnia.  O Cristianismo , estrategicamente, colocou sua festas principais na mesma data das antigas festas pagãs, no sentido de esvaziá-las. Os festins são todos retratos vivos de velhas encenações e iniciações de ritos pagãos. O Natal ( até hoje não sabemos a data do nascimento de Cristo) foi alocado em  25 de Dezembro, exatamente na antiga Saturnália , a grande festa romana que comemorava o solstício de inverno. A Páscoa, com seu coelhinho, seu chocolate e seus ovos, remontam ao culto da Deusa Ostera, símbolo da fertilidade e do renascimento na Mitologia anglo-saxônica. As comemorações dos nossos dias santos não passam, na verdade, de adaptações aos rituais às deusas primitivas, reverenciadas na época das plantações e cultivos dos alimentos. Deve ter se sedimentado no nosso inconsciente coletivo que não se pode venerar Zeus, sem acender também uma  vela para Vênus, para Baco e Dionísio.
                                   Possivelmente as árvores continuaram sendo tombadas; as bandas de forró seguirão fazendo a trilha sonora das festas religiosas; os tonéis de aguardente  persistirão na sua tradição de regar as preces. Apesar das nuvens, a lua permanecerá cheia. Adelmiram sabe disso e – mesmo sem sê-lo--  faz aquilo que se espera de um lobisomem : uivar !



07/06/13