sábado, 30 de março de 2013

Pilatos



Cá estamos em plena Semana Santa, já sem o glamour de tempos passados. Algumas cidades brasileiras aproveitam o feriado da sexta feira para armar grandes festas perfeitamente profanas. A maior parte do povo perdeu a ritualística cristã e já não sabe bem o que significa o feriadão. Empanturra-se de vinho e aparenta um ar de santidade e transcendência. As crianças ligam imediatamente a páscoa ao coelhinho e ao chocolate. As classes mais desfavorecidas aproveitam a oportunidade para abastecer um pouco a despensa vazia e saem mendigando víveres para um jejum  cada dia mais raro e distante. Os comerciantes entendem a santidade desta semana como o momento oportuno para aumentar o preço do peixe e do bacalhau e levar um pouquinho mais ao caixa da empresa. Nas igrejas os santos se cobrem de roxo talvez mais pelo absurdo total do que vêem a sua volta do que pelo peso plúmbeo e culposo da memória terrível da crucificação.
Desde os tempos de juventude que a quaresma me suscita  a imagem  de Pilatos. Sei que o    nome Pilatos hoje remete imediatamente à academia de fisicultura. Os mais jovens lembram-se de pronto daqueles aparelhos para malhar  e sair por aí bombados e impressionando a garotada com músculos mais definidos. Assim, preciso explicar : falo de Pôncio Pilatos. Bem,  ele foi prefeito da Judéia entre 26 dC e 37 dC . Teria passado totalmente despercebido dos livros de história  se não houvesse participado de um dos mais importantes julgamentos de toda a história. Pilatos foi o juiz do processo de Jesus e terminou acatando a opinião da maioria e ao lavar as mãos condenou-o ao suplício no Gólgota. A sua decisão manchou definitivamente a sua história e, certamente, contribuiu para um julgamento histórico implacável de todas as condutas da sua vida. Tido como violento, venal, corrupto e de uma ferocidade sem limites em todos os júris que participou, segundo os historiadores Filão e Flávio Josefo. Nos séculos seguintes surgiram inúmeras lendas envolvendo o seu nome. Desde um final desastroso em Tevere ou em Vienne na França, o suicídio em 37 dC; até sua conversão ao cristianismo, influenciado por sua esposa Prócula que é considerada santa pela Igreja Ortodoxa. Ele mesmo  foi santificado pelas Igrejas etíope e copta. O “Credo”, oração surgida em torno de 200 dC,  no entanto,  lhe macula definitivamente a memória  : padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado...".
Em tempos de tanta liberalidade nos rituais religiosos da Semana Santa por parte da população, me ponho a imaginar o papel singular de Pilatos em toda a história sagrada ocidental. A primeira questão a ser levantada por tantos juízes de plantão é simples. Se todo o suplício de Jesus estava pré-estabelecido, inclusive previsto por profetas, é possível que o papel de Pilatos assim, também, estivesse determinado e que ele apenas tenha sido um veículo necessário à confirmação da profecia e dos desígnios divinos. Mesmo afastando esta hipótese, nos coloquemos no papel do juiz romano. Julgava um prisioneiro político que não conhecia e , como no direito romano, seguiu a opinião dos jurados. Opor-se seria, em tempos atuais, afastar-se da decisão do corpo de jurados e tomar uma decisão unilateral, um verdadeiro absurdo jurídico na visão contemporânea. Mesmo assim , Pilatos hesitou na sentença e preferiu tirar o corpo de fora. A posteridade escolheu o caminho mais cômodo e lhe imputou a culpa pela crucificação. Em nenhum momento se volta para a grande turba que preferiu Barrabás e que ano após ano, julgamento após julgamento, continua politicamente escolhendo sempre a pior parte.
Basta olhar em volta, em meio aos tonéis de vinho consumidos, ao comércio do jejum, às festas profanas reverenciando o sagrado, para se perceber que se Cristo voltasse, se o julgamento fosse hoje, a crucificação se repetiria. Os que hoje fazem a multidão e o corpo de jurados são descendentes fiéis de Barrabás. Pilatos ao menos lavou as mãos, os juízes de hoje as tingiriam, rapidamente, de rútilo sangue inocente.
 10/04/09

sexta-feira, 22 de março de 2013

Catecismo



Quando do ajuntamento dos   “Apontamentos para a história mítico-sentimental  de Matozinho”, que terminaram publicados em 2007, notamos uma pasta vermelha à parte, separada cuidadosamente no meio dos manuscritos, etiquetada com letras garrafais : “Cuidado!” No processo de pesquisa,  terminamos por abri-la, não sem algum receio,  e encontramos no interior a razão pela qual o colecionador as havia reservado. Tratavam-se de histórias apimentadas da vila, puxadas para o erótico e o fescenino  e, certamente, meu velho tio as isolou, temendo identificarem-se alguns dos personagens e, também, resguardando um certo pudor: poderiam cair nas mãos de moiçolas púberes, de crianças ou ferir sensibilidades moralistas e religiosas. Aquilo parecia quadrinhos de Carlos Zéfiro !  O certo é que o receio do meu tio contaminou-me e, no processo de seleção dos textos do “Matozinho vai  à Guerra”, preferi manter o pundonor do meu parente e deixei a pasta vermelha intocada. Os anos passaram-se e, pouco a pouco, fui percebendo que  já não existiam razões para tanto pejo. O BBB jogou no ventilador toda a intimidade da alcova, as novelas escancararam o último reduto da decência, os adolescentes produzem seus próprios vídeos pornôs e expõem no You Tube. A pasta vermelha, hoje, parece até um catecismo, pode ser publicada até em livrinhos de missa de sétimo dia.
                                               Recentemente, reabri a pasta vermelha , reli alguns textos e resolvi publicar alguns que me pareceram mais picantes. Em dias de hoje, sei que não existe mais o perigo de o leitor degustá-los e comungar em seguida. Não há mais o risco de a hóstia sagrada ferver na língua como um sonrisal. Pois aí vai a primeira dessas histórias.
                                               Ah,  os homens ! Eternos atores no palco dessa vida! Põem máscaras, vestem-se de ricos figurinos e encenam continuamente aquele papel que os tornam mais reconhecidos e admirados pela platéia: o de Rico, bonito, inteligente, compreensivo,  valente, bondoso, caridoso, virtuoso, santo !  Durante toda existência,  buscam, incansavelmente, aperfeiçoar este personagem perfeito que aqui e ali termina por mostrar outras facetas e arestas bem menos admiráveis. Só existem dois lugares em que a máscara cai, a maquiagem é removida e as fraquezas e deformidades aparecem sem a magia do palco : o Bar e o Cabaré. Aí o homem é apenas o homem, com seus anjos e demônios bem aparentes. O Bar e o Cabaré são o camarim da cidade !  Assim, as cafetinas  e as putas conhecem como ninguém a alma de uma vila. Têm a perfeita dimensão de onde começa e termina a santidade de cada um de nós; conhecem as mínimas fraquezas, taras e deformidades  dos habitantes ; preenchem com  amor   o vazio de tantas solidões. Claro que com um amor negociado, mas existe alguma coisa sem preço e código de barras numa sociedade de consumo ?  O velho “Boca Boa” ,em Matozinho,  já havia chegado à conclusão que o amor é puro devaneio. Chegue eu – diz ele—com cinqüenta reais na Rua do Caneco Amassado ! Sou tratado como rei, vou ser amado e idolatrado !  Agora vá eu liso, como muçum ensaboado ! O amor existe sim, mas é tabelado, meu senhor !
                                               Existem, no entanto, interpretações diferentes sobre a teoria do nosso “Boca Boa” . No governo de Sarney, talvez os mais novos não lembrem, mas o preço dos produtos foi tabelado.  Quebrando todas as regras da economia, não era permitido majorar o preço de qualquer item, sob pena de prisão. Como era de se esperar, os víveres desapareceram das prateleiras e começou a se estabelecer um mercado paralelo, misterioso,  baseado na eterna lei da oferta e da procura. Em Matozinho, os magarefes começaram a aumentar o preço da carne. Houve denúncia, a polícia se mobilizou, invadiu o mercado municipal e prendeu os insubordinados. Estabeleceu-se a maior algazarra, já fora do prédio, com os soldados algemando os revoltosos e metade da população observando e comentando. Nisso, atiçada pelo barulho, “Das Virgens”, uma das mais tradicionais quengas da Vila, chegou em meio à balbúrdia, buscando informações sobre o que estava acontecendo.
                                               --- Que putaria é essa? O que diabos tá acontecendo ?
                                               Uma das suas pariceiras ,que estava no meio da multidão, explicou :
                                               --- É a polícia que está prendendo os magarefes !
                                               --- Oxente! Mas por que ?  Cons seiscentos ! E que diabos foi que eles fizeram? – Quis saber Das Virgens .
                                               --- Eles aumentaram o preço da carne e num pode!  A carne tá tabelada !
                                               Das Virgens, surpresa, saltou um suspiro de alívio e comentou alto como se estivesse numa difusora :
                                               --- Ave Maria ! Ainda bem  que priquito num tá tabelado, meu deuso !
                                               *********************************
                                               Gumercindo Carabina trabalhava como vendedor numa loja de confecções em Matozinho, chamada de “Cambraia de Linho”. Gugu  , como era conhecido pela gandaia, era casado, tinha uns dez filhos, mas era viciado num Cabaré. Escapava para lá sempre no horário de almoço que não dava tanto na vista. À noite estava sempre com a família, como um fiel e exemplar cidadão!  Gugu tornou-se freguês preferencial de um cabarezinho na Rua do  Amassado, naquele último lugar para onde acorriam as putas já idosas e sem fama e que se conhecia pelo nome de “Farinhada”. A intimidade era tanta com “Santinha”, a sua predileta, que ele pagava por mês, como se fora o aluguel de um imóvel. Um dia, em plena hiperinflação em fins do Governo Sarney, após terminar a transa com Santinha, Gumercindo se arrumava para voltar ao expediente da tarde no “Cambraia”, quando foi despertado por ela da terrível situação econômica do país:
                                               --- Ei, Gugu ! Tu vem amanhã ? Num se esqueça , não, viu ? Cu subiu !
                                               ************************************
                                               O velho Sinfrônio Arnaud gostava de freqüentar o Bar conhecido por “Pentelho de Ouro” , na mais mal afamada rua de Matozinho. Arnaud freqüentava por pura mania, gostava do ambiente, das conversas e da proximidade das meninas de difícil vida fácil. Já não tinha idade para maiores danações e libações eróticas, mas restara nele aquela mania, aquele clima despojado do  lupanar. Um dia, entre uma e outra dose de pinga, ouviu uma confusão danada na rua. Vinha das bandas da “Farinhada”. Deixou o copo no balcão, por um momento, e saiu à porta para testemunhar o arranca-rabo. Viu, então, Jojó Fubuia, no meio da rua, tentando correr, ainda assungando as calças e, logo atrás, uma quenga robusta, com uma trave da porta na mão, sentando a pua no pobre do Fubuia. Sinfrônio ficou penalizado com a situação do mais famoso deodato da vila.  O que teria acontecido ? A confusão veio de lá, na direção de Arnaud, o pau comendo no centro : a quenga como um carcará atrás do pau d´água, a trave voando solta, Jojó tentando escapar como podia. Ao passar , por fim, pelo bar, a puta parou um pouco e explicou, por fim, as razões mais que justas para a surra :
                                               --- Coronel, veja se eu não tenho razão  ! O senhor já ouviu falar, em algum lugar do mundo,  em cu fiado ? Já ?

                                               Cunegundes Pé-de-Pato  veio a Matozinho, na intenção de fazer um empréstimo agrícola.  Ano eleitoral, antes do período invernoso, o Banco do Brasil montara um pequeno posto temporário para ajudar , segundo divulgavam os políticos, os agricultores. Cunegundes já tinha mandado um mundão de documentos e viera naquele dia,  pois havia a promessa da liberação da verba. Enfrentou uma fila danada, depois um chá de cadeira de mais de duas horas e, finalmente, botou a mão na bufunfa. Não era muito, uns quinhentos cruzados, dava para comprar, talvez, umas duas vaquinhas. Dinheiro no bolso, pensou em voltar para Bertioga, mas já não havia, àquela hora,  sopas disponíveis. Dirigiu-se , então, à Loja “Cambraia de Ouro” e procurou seu amigo Gumercindo. Explicou-lhe a pendência e perguntou-lhe onde poderia pernoitar . Gugu, como era de se esperar, deu-lhe uma idéia genial: O Cabaré de Maria Justa, o mais requintado de Matozinho. Cunegundes  gostou da dica e partiu para lá. Estabulou conversa com uma das meninas, uma loirinha bonita, reboculosa, perna grossa e bunda tanajúrica. Conversa vai, conversa vem, após umas doses ,uma dancinha bochecha com bochecha e uns entrelaçados dos pés de pato de Cunegundes com os troncos de aroeira da loirinha, terminaram na noite de núpcias. Pela manhã, acordou um Cunegundes feliz e realizado. Arrumou-se e, depois, lembrou que cometera um erro primal: não havia acertado o preço previamente , coisa quase impossível de acontecer com os atilados bertioguenses. Cunegundes, então, algo temeroso, pediu a conta :
                                               --- Foi muito bom ! Quanto tô devendo, meu bem ?
                                               A loirinha, ainda deitada, refazendo-se um pouco sob os lençóis, respondeu-lhe com voz sensual como locutora de aeroporto:
                                               --- Cuné , eu cobro trezentos cruzados ! Mas para você, que é um freguês tão bom e  parece um  jumento fogoso na cama, vou cobrar só duzentos e cinqüenta, tá bom?
                                               Pé-de-Pato não pode conter a surpresa! Lá se ia metade do seu empréstimo, só numa noite. Conteve-se um pouco, mas soltou :
                                               --- Duzentos e cinqüenta, mas não tá muito caro não, minha filha ?
                                               A loirinha, não se enrolou:
                                               ---- Cunezinho, tá tudo pela hora da morte ! Agora mesmo a gasolina subiu!
                                               Cunegundes meteu a mão no bolso, contou as cédulas com uma pena danada e pôs em cima da camareira. Quando abriu a porta para sair, a loirinha, feliz, perguntou interessada:
                                               --- Filhinho e agora quando você volta ? Quando te vejo de novo ? Já tô morrendo de saudade !
                                               Pé-de-Pato fechou a porta lentamente, enquanto mandava-lhe a resposta:
                                               --- Desse preço não dá ! Só volto agora quando você botar um priquito a óleo ou a gás butano !

22/03/13

sexta-feira, 15 de março de 2013

No fundo, no fundo, Matozinho sabe das coisas...



Matozinho, final de tarde, lá estavam os “jornalistas” de plantão, reunidos na praça da matriz, comentando as últimas notícias e dando pitaco em tudo :  de cibernética à plantação de coentro. Aberta a pauta da última semana,  de lá saltaram, com, estardalhaço, como  codorniz detrás de moita :  a eleição do Papa, o julgamento do Bruno e, na seção mais regional, a Seca e algumas traquinagens de pretensas baitolagens e enchiframentos . Conversa vem, palestra vai, eis que chega ao tribunal, Jojó Fubuia que, àquelas alturas,  já tinha espantado não só o  anjo da guarda mas  toda corte celestial .  Fubuia , certificando –se da pauta, apressa-se em  acrescentar mais um item para parecer : “ Na Bahia, abriu-se um concurso para policial e estão exigindo, das mulheres candidatas, atestado de virgindade”. Resolvida, por quase unanimidade a quantificação da pena do goleiro: deve ser capado e os possuídos servidos as barrões de Coronel Sinfrônio Arnaud; passou-se a assuntos papais resolvendo-se que iriam levar ao Padre Arcelino uma petição solicitando encaminhamento de milagre a Santa Genoveva, dando paciência ao povo do Brasil para suportar os argentinos que já se pensavam deuses e, agora, com a eleição do Papa portenho, passaram a ter certeza.
                                   Chegando à questão trazida, em caráter emergencial, por Fubuia, as opiniões se dividiram. Alguns defenderam a tese de que a exigência era perfeita, uma vez que não se admite um policial militar sem honra. Outros colocaram em cheque o absurdo da cláusula , lembrando que não se tinha o mesmo critério com os homens. Houve consenso num ponto: a dificuldade em formar um pelotão de imaculadas, nos dias de hoje, a não ser fazendo convênio com o éden dos islâmicos que, por tradição, possui uma mina inesgotável de virgens. Giba lembrou a estranheza e o ineditismo da notícia, com um : nunca antes na história desse país !
                                   O velho Sinfrônio Arnaud, escorado em um dos bancos da pracinha, até então tinha sido lacônico. Quando resolveu falar, os outros silenciaram em reverência. Arnaud não era homem de muita conversa e não aprendera a ouvir opiniões contrárias. Informou, então, para uma platéia boquiaberta, que a Bahia apenas estava imitando Matozinho. Aquilo tudo já se passara ali há mais de trinta anos, esta era uma das únicas vantagens de se ser velho! -- vociferava um Arnaud pletórico e com veia do pescoço dilatada.Fora, inclusive, causa de morte e de uma grande debandada de matozenses para São Paulo, fugindo dos rigores de uma seca feroz no ano de 1958. Instado por uma platéia curiosa, nosso Sinfrônio narrou o ocorrido. O prefeito da época, Pedro Cangati, preocupado com o abastecimento de água na cidade, resolveu contratar mulheres para transportar a água barrenta de alguns poços últimos do Rio Paranaporã , até à vila e ali a distribuir para a população. Com esta medida, matava dois preás com um só fojo: melhorava o abastecimento e também a renda familiar das contratadas, todos em situação de calamidade pública. O problema é que havia cacique demais para pouco índio. Mal vazou a notícia da possível contratação, a prefeitura se viu apinhada de gente atrás do emprego: mais de mil e quinhentas mulheres faveladas. Pedro viu-se em dificuldade política no processo de escolha. Pediu então, a Saturnino-Ôi-de-Putaria , seu secretário na prefeitura e que carregava a alcunha por conta de ser vesgo ôi-de-pentando a contrataçpor conta de ser vesgoaveldaortar a ra Se Arcelino uma petiç, pediu-lhe para preparar um edital regulamentando a contratação da maneira mais legal possível. Saturnino lavrou o edital e afixou na recepção da prefeitura. Escrevia ruim como o diabo, fizera apenas um curso Mobral e mal assentava o nome. Passados os dias, observou-se que muitas e muitas mulheres liam o Edital, mas não se inscreviam. “Ôi-de-Putaria “ estranhou o súbito desinteresse das candidatas , a coisa tinha mudado da água barrenta e salobra do rio , para fubuia mata tatu do coronel Sinfrônio. Pediu , então, para que funcionários interrogassem as pretensas candidatas ,após a leitura do Edital, sobre a má vontade em trabalhar, mesmo em tempos tão bicudos. Só então se desvendou o mistério. Elas informaram ,reiteradamente, que não podiam se enquadrar nos critérios do Edital. O Secretário resolveu reler e no Art. 3 estava exposto : “As candidatas necessitam trazer a documentação exigida no Art 2 e, precisam, necessariamente ter cabaço”.  O Secretário queria empregar mulheres habilitadas e que possuíssem já uma cabaça para transportar a água, o que facilitava as coisas. O problema é que na hora de datilografar , ocorreu um erro e a Cabaça saiu no masculino, tornando-se, assim, uma exigência intransponível mesmo em terras matozenses.
                                   Ciente, agora , do esdrúxulo impasse, e pressionado diuturnamente por Cangati, Saturnino resolveu refazer o Edital. Cuidadosamente datilografou um novo documento e afixou na prefeitura. Pediu ainda para a amplificadora local divulgar o desaparecimento das exigências anteriores. Dias passaram-se , inúmeras candidatas retornaram , releram o Edital, mas simplesmente se calavam e saiam sorrateiramente sem se inscrever. Gente morreu de sede, esfarrapados fugiram para o Sul e nada de se instalar o programa salvador prometido por Pedro Cangati, por absoluta falta de inscritos. Depois de muitos meses , um dia, relendo o documento convocatório é que o ilustre edil de Matozinho descobriu a causa da falência do seu Programa Emergencial Contra a Seca. O Artigo 3 do Edital, corrigido por “Ôi –de- Putaria” , recebera uma nova redação que aparentemente deveria facilitar as coisas não tivesse incorrido em séria ambigüidade:
                                   “ As Candidatas devem se inscrever na própria prefeitura , portando os documentos exigidos no Art. 2 desse Edital. Precisam trazer uma lata dessas de dezoito litros para transporte da água tem que ter um pau no meio e não podem ter nenhum furo no fundo”.

14/03/13

sábado, 9 de março de 2013

Vem !




                               "Eu não acredito em caridade.
 Eu acredito em solidariedade.
Caridade é tão vertical: vai de cima para baixo.
Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro.
 A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas."

Eduardo Galeano

                                   Há algo de novo  pairando por sobre o céu do Cariri, além dos urubus, das pipas  e do Aedes aegypti.  Paulo Freire, com a clarividência que carregava um dos maiores educadores da humanidade, afirmava que havia lutado toda vida para que a justiça social chegasse primeiro que a Caridade. É que a Caridade, amigos, é sempre meio vertical, como tão bem esclareceu nosso Eduardo Galeano; ela, em geral, não traz consigo aquele sentido libertador. De alguma maneira, os caridosos transparecem, claramente, que gostariam que continuassem a miséria e a pobreza para que eles nunca parassem de minorar seus muitos conflitos interiores ajudando aos famintos e pobrezinhos. Se eles não mais existirem, o que será de nós ? --Devem pensar consigo mesmos . As classes mais favorecidas sempre se indignam  quando a miséria lhes bate aos olhos. Reclamam daquela ignomínia, todos são perfeitamente a favor da distribuição de renda, desde que não se mexa, um pouquinho que seja,  com o nosso  quinhão. Qualquer iniciativa no sentido de reverter um pouco este quadro dantesco, a coisa pega fogo. Vejam o Bolsa Família! A revolta da elite é geral : estão viciando os pobres! Desde que inventaram isto, não se arranja mais empregada doméstica , nem trabalhador rural !  Revoltam-se por já não poder pagar uma diária de dez reais ao homem do campo e um terço de salário mínimo aos seus domésticos! O negócio é pagar uma miséria e depois compensar com uma caridadezinha e ficar-se imaginando, depois,  o maior benfeitor da humanidade, com poltrona garantida na corte celestial !
                                   O ouvinte, talvez, não tenha percebido, mas há algo de novo nos ares caririenses,  nos últimos três anos. Um grupo de adolescentes  ,quase duzentos,  todos de Classe Média, reuniu-se, há três anos,  nas férias escolares,  e montou um Projeto chamado : “Vem, vai ter Sorriso !”  O intuito é pedir doações junto à comunidade e depois distribuir cestas básicas com as famílias mais carentes  que são escolhidas, , cuidadosamente , em entrevistas nos bairros mais pobres. Os meninos visitam o comércio, fazem pedágio e promovem shows beneficentes para arrecadação de alimentos não perecíveis. A última edição do Projeto, acontecida em janeiro e fevereiro últimos, amealhou quase três toneladas de víveres. Os shows aconteceram no SESC/ Crato ,  por todo um final de semana, o SESC que ,como sempre,  tem sido o templo da cultura cratense. Inúmeras bandas caririenses compareceram, levando sua contribuição musical , estimando-se um público de mais de duas mil pessoas no evento. O “Vem , vai ter sorriso” não aceita qualquer ingerência nas suas ações seja de política partidária, de grupos religiosos, de entidades comerciais ou filantrópicas. O projeto não é centrado em figurinhas carimbadas, as decisões são tomadas sempre em reuniões amplas. Utilizam, ainda , os meios de comunicação onde circulam com mais desenvoltura : as Redes Sociais. O poder de arregimentação deles é impressionante ! Recentemente foi motivo de uma extensa reportagem televisiva veiculada no Noticiário do Cariri e em todo o Ceará.
                                   O ouvinte pode não entender o que há de novo no “Vem, vai ter sorriso!” Vemos, novamente, as novas gerações preocupadas com as questões sociais que lhes mancham os olhos. Podiam estar em bares, em festinhas, nos clubes, metidos com vícios de cardápio variado,  mas, ao invés disso, de repente, de forma espontânea, resolvem pingar um pouco das gotas que têm em mãos para tentar apagar o incêndio. Percebem que a solução para as nossas graves doenças sociais depende de política pública, mas não cruzam os braços e esperam as iniciativas de Brasília. Sabem que cada um de nós , por vontade própria, é também capaz de minorar a fome de alguns, de fazer brotar sorrisos , de aplacar o sofrimento, assumindo nossa parte, independentemente das ações de outros agentes sociais.E o mais importante de tudo é que, saindo do abrigo, da cômoda vida de todos, da estabilidade familiar, de chofre se vêm diante de outras realidades penosas e desumanas. Muitos , ao entregarem as cestas, saem das palhoças com olhos marejando e isto é engrandecedor. Aprendem valorizar as pequenas coisas desta vida e, mais, despertam para a necessidade de mudança, com a certeza de que o mundo é um sistema de vasos comunicantes e que não é possível ser feliz sozinho. A solidariedade é sempre um caminho de duas mãos : ofertamos por uma das vias e nos beneficiamos pela outra.
                                   O “Vem , vai ter Sorriso! “  traz um novo alento para o mundo, deixa-o mais respirável, mais róseo, mais oloroso. Os meninos talvez não tenham descoberto ainda,  mas, como já se disse:  restará sempre um pouco de perfume nas mãos daqueles que ofertam flores...

08/03/13