sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Data Vênia



Jesualdo entrou no escritório com aquele  ímpeto de  furacão Katrina. Esperara por mais de uma hora na sala de espera do advogado, ansioso, aguardando a saída de um senhor careca  que cuidava  de uma das coisas mais enroladas desse mundo : Inventário de gente rica.  Ficou ali, tentando ler revistas antigas, sem se concentrar nas notícias, como se estivesse sentado em folha de cansanção.  Os minutos se arrastavam tartarugadamente. Quando a atendente, por fim , liberou sua entrada, foi como se lhe tivessem arrombado as tariscas de uma  gaiola. O causídico ali estava à sua frente, calmo, impassível, sem maiores motivos para desespero, afinal casos eram apenas casos e se sucediam monotonamente, todo santo dia, diante do seu bureau. Não contendo a ansiedade represada por muitos minutos na saleta de espera, Jesualdo disparou :
                                   --- Doutor,  quero entrar com um processo de danos morais!
                                   Afeito ao desespero comum de seus clientes, Dr. Cacionildo aprendera que se fazia mister atendê-los como se estivesse degustando um prato de papa quente: era preciso começar pelas beiradas até chegar ao fundo do pirex.  Com olho clínico percebera alguns hematomas, em fase de regressão no rosto do cliente.  Levantou-se, pois, da cadeira e cumprimentou-o formalmente. Quis saber-lhe do nome .  Pediu para ficar tranqüilo que aquela era sua especialidade. Inquiriu-o se estava tudo bem com ele e com a família, falou sobre a estiagem no Nordeste que estava uma verdadeira calamidade, dissertou brevemente sobre as dificuldades que vinha passando com as criações na sua fazenda e interessou-se saber se ele também era pecuarista e como estava se virando para alimentar o bando. Quebrado o gelo,  no tangenciamento do problema central, Cacionildo , finalmente meteu a colher no fundo do prato:
                                   --- Pois, não, seu Jesualdo ! Em que posso  servi-lo ?  Quem feriu de morte seus princípios morais, homem de Deus ?
                                   Jesualdo, já abancado devidamente num cadeirão em frente ao bureau do adovogado, um pouco mais restabelecido, foi direto aos finalmentes:
                                   --- Quero entrar com um processo contra a Coca-cola, por danos incalculáveis à minha moralidade e , inclusive, à minha integridade física.
                                   O doutor, mesmo sem ciência do objeto causador do dano e suas possibilidades jurídicas, viu-se diante de sentimentos díspares. De um lado a alegria de poder estar processando uma grande empresa, multinacional, de patrimônio incalculável e, pois, com amplas condições de pagar gordas indenizações. Do outro a percepção de que traria , na defesa, grandes escritórios nacionais, com pesada influência política e econômica nas decisões do judiciário, máxime em instâncias superiores. Pediu-lhe, então,  que detalhasse, data vênia,  toda a questão com fins de se ter um melhor diagnóstico e prognóstico  da causa a ser encetada. Pela história comprida e cheia de reentrâncias que Jesualdo começou a narrar, o advogado rápido percebeu que seria muito mais enrolada a consulta que a do careca do inventário.
                                   Jesualdo informou que estava casado há mais de vinte anos  não com uma mulher mas com uma mistura de jararaca com lacraia. Ele sempre fora um ferrolho, mais por temor e menos por virtude. Há uns dois anos, sabe-se lá como, começara  um rolo com uma colega de trabalho. Coisa debaixo de sete chaves, mais escondida do que  quenga  de cardeal. Sabia do perigo que corria, mas o temor estranhamente lhe instigava de forma quase que suicida. Gabriella  , a namorada, não era uma beleza clássica. Divorciada, era fraca de feição, mas tinha lindos e acolhedores air-bags e, da cintura para baixo, tanajurava-se maliciosamente. O romance, discreto, ia de vento em popa, até que  a CNN da vizinhança desconfiou e terminou divulgando-o  em várias edições especiais. Quando a manchete bateu nas orelhas afiadas da esposa, esta não perdeu tempo recolhendo provas. Quebrou o pau no pobre do Jesualdo, fez o maior escândalo e o expulsou de casa. Ele , ao menos, teve a felicidade de sair levando a mala, ao invés de ir dentro dela, como vem acontecendo mais modernamente.  Os meses se passaram e a raiva não aplacava. Jesualdo começou um discreto cerca-lourenço, ajudado por amigos e familiares, mas a esposa não queria nem ouvir falar no seu nome. Dera entrada oficial no pedido de divórcio. O tempo, no entanto,  o solucionador mor dos problemas da humanidade, começou a surtir efeito e a dismilinguir o ódio incontido da esposa, até porque havia opiniões fidedignas ( embora não confiáveis de todo) de que Gabriella já navegava em outras naus. Conversa vai, conversa vem, finalmente, após mais de um ano ,Jesualdo conseguiu marcar um jantar com a esposa onde pretendia conversar amenidades, encetar uma nova aproximação, fugir do passado como o cão da bíblia e, quem sabe, na melhor das hipóteses , terminarem num motelzinho, reacendendo o fogo antigo arrefecido pelas curvas tanajúricas gabrielianas. Segundo Jesualdo, tudo corria conforme planejado. Escolheu um restaurante caro, uma mesa reservada,  à luz de velas , uma música de fundo adocicada, dessas contraindicadas a diabéticos. Entabulou assuntos amenos, pediram um prato de frutos do mar, um vinho branco de boa safra. Tudo corria bem, as mãos tinham se tocado algumas vezes e Jesualdo disse que tinha dado uma certa “formigagem” nos dois. Mas aí veio a tragédia! Num instante,  estabeleceu-se, novamente, uma praça de guerra. Esporros da esposa, garrafada de vinho na testa de Jesualdo, fuga , intriga redobrada, audiência de divórcio novamente desencadeada. E tudo por culpa da Coca-Cola !
                                   --- Da Coca-Cola ? Mas como, seu Jesualdo?  Onde ela entra na história ? Não entendo ! --- Saltou de lá o advogado.
                                   --- Da Coca-Cola sim, doutor ! Quando chegou o prato principal , a Lagosta ao Thermidor, minha mulher resolveu pedir uma Coca-Cola !
                                   --- Sim, Jesualdo, mas qual o problema ?
                                   --- Ora Dr. Cacionildo, a Coca me lascou! Agora ela não tá com essa mania besta de botar os nomes das pessoas na latinha? Pois adivinhe o que estava escrito na coca que minha mulher pediu ?  “Quanto mais  GABI , Melhor !”  Fudeu ! Quero indenização !

28/12/12

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Presente de Natal



                               --- Trimmmmmmm !!!!!!!

                        O estampido do telefone soou dentro da sua alma , como se tratasse de uma locomotiva a vapor. É que os últimos meses tinham sido terríveis. Funcionário de uma estatal, com salário minguado , mas regular, há um ano aderira a um destes fabulosos planos de demissão voluntária. Não dava mais para suportar o ambiente de trabalho: cobranças ininterruptas e o chefe olhando pra ele com aquele cara de carrasco , de “cuidado , você é o próximo!”. Pegou a indenização parca que lhe pagaram pelo seu suicídio prematuro e abriu um pequeno negócio de portões eletrônicos. De início a firma andou de vento em popa: com a incrível insegurança urbana, os homens precisam criar os seus castelos inexpugnáveis, pensando que assim podem se isolar do mundo. Chegou até a imaginar que a demissão tinha sido uma das melhores decisões que havia tomado.
                        Em pouco, porém, o mercado se viu saturado, eram tantos e tantos outros , na mesma situação dele, dividindo  a mesma fatia do bolo! Não bastassem as pequenas piabas iguais a ele, com a globalização entraram peixes grandes no aquário e , aí , a ração só costuma sobrar  para os tubarões! Quebrou e se encontrava naquela situação desesperadora: os amigos antigos se afastaram, os cobradores batiam à porta a todo instante, os filhos já tinham sido transferidos para escolas públicas, o aluguel atrasado quatro meses e ninguém mais aceitava seus vales. Os vizinhos diziam, com sorriso maroto:                          --“Não tem crédito nem para comprar a vista!”.
                        Esse era o fosso verdadeiro em que se encontrava no exato momento em que o telefone tilintou , desesperadamente: talvez por isto foi que penetrou tão agudamente no fundo da sua alma.

                        --- Trimmmmmmmmmmm!!!!!!


                        Nos últimos dias aquele aparelhinho havia feito pacto com o demo. Atendê-lo configurava-se em causa imediata de aborrecimento. Cobradores circulavam sua casa , como aves de rapina e as chamadas eram uma espécie de aviso prévio do ataque faminto e guloso. Assim, pediu à esposa que atendesse e desse uma desculpa qualquer: saiu, viajou, foi para a missa! A companheira atendeu contrafeita : já não mais suportava criar estórias fantasiosas e  esfarrapadas. O semblante tenso da mulher relaxou um pouco,  quando ouviu a voz do interlocutor, do outro lado da linha. Conversou pouco e formalmente: tudo bem, tudo em paz, todo mundo com saúde! Virou-se aliviada para o marido e passou o fone:

                        --- Sua mãe!

                        Num primeiro momento, sentiu-se aliviado. Nada como ouvir a voz da mãe num momento destes. Certamente tinha sido o sexto sentido materno que havia , como um timer, disparado e a impulsionara a ligar imediatamente para o filho. A velhinha morava em outro estado e andava muito doente: perdera a vista praticamente, ouvia mal e deslocava-se com grande dificuldade. O filho pressentia, no entanto, que em meio à tamanha debilidade orgânica, havia uma força estranha e profunda, aquela energia materna, capaz de reacender as mais arrefecidas esperanças. No instante seguinte, porém, estacou absorto e vacilou : seria justo beber aquela última centelha de luz, da sua mãe ? Ela a cederia com o maior prazer e abnegação, mas seria justo?

                        --- Mamãe? Tudo bem ? Aqui tudo às mil maravilhas! Os negócios estão crescendo, como nunca imaginei ! Sou agora um dos maiores empresários do estado! Reformamos a casa e estou falando com a senhora, neste exato momento, deitado numa cadeira , na beira da piscina olímpica aqui do quintal. A mulher arranjou um trabalho na procuradoria do estado e está ganhando uma nota preta. Troquei o carro esta semana , por um outro do ano e importado. Como o Collor, já não agüentava estas latas de sardinha nacionais!  Queria até que o seu neto, mamãe, estivesse aqui para falar com a senhora, mas foi para os Estados Unidos, conhecer a Disney e só volta no fim do mês. Não vamos poder ir agora no final do ano, infelizmente, porque estou ampliando a fábrica, mamãe; logo que tiver uma folguinha, dou um pulinho por aí. Beijo, mamãe! Feliz Natal para a Senhora. Sei que a senhora tá feliz, sei, não precisa nem dizer.Tchau!
                        Defronte dele, a mulher embasbacada, parece que tinha visto fantasma. Ele, calmamente, desvendou o mistério: Ela, minha filha, está doente , já não pode vir nos visitar e ver a porqueira de vida que estamos vivendo e mesmo que viesse, está cega, não viria nada. Quantas vezes ela, na minha infância não fez o mesmo? Seu pai não tarda a chegar! Quando ganhar na Loteria te dou uma bicicleta! Vou arrancar este dentinho de leite, não vai doer nada!Esta foi a única maneira que eu encontrei de dar para ela um presente neste Natal!
                        A mulher , entre lágrimas, sorriu! Adivinhou que são afinal estas pequenas mentiras , estes leves engodos que tornam a vida suportável e que vão realimentando as nossas baterias gastas, pelo tempo afora  . Sem este filtro cor de rosa, a vida que já é um curta metragem ,surgiria aos nossos olhos, violentamente, com seu verdadeiro , sombrio e cru preto-e-branco. Estas mentirinhas, afinal, são como um prisma que se interpõe entre o frio e translúcido feixe de luz da vida e que acaba por fazer a refração , muitas vezes a transformando na beleza fugaz, mas multicolorida do arco-iris.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Maias




                                                               Embora negue ,peremptoriamente, consta que teria partido de Valdenor aquele projeto genial. Depois do big-bang,   fica difícil juntar os cacos do quebra-cabeças e descobrir quem  teria assoprado o lume do estopim. Como sempre, as grandes idéias surgem, meio por acaso, sopradas pelo bafejo de algum anjo de luz ou sussurradas no pé do ouvido pela língua ofídica de algum dos decaídos . E o diabo é que a tragédia tinha acontecido simultaneamente com dois amigos de infância e adolescência, mas que agora, tangidos pelas vicissitudes do destino, estava cada um ( ado-ado-ado) no seu quadrado, tendo de ganhar a vida e arranjar algum alpiste para alimentar os bruguelos, cada um em  planeta diferente.
                                               Valdenor , passados os sonhos dourados  da juventude, teve que antecipar o casamento por conta de um emprenhamento prematuro da namorada. E eram tempos de “casa ou morre”. Na sinuca de bico, preferiu a morte a crédito: casou, deixou de lado os projetos estudantis e passou a trabalhar como vendedor numa concessionária de automóveis. Orlando fora seu amigo inseparável nos tempos de escola , de bailes e de farras homéricas. Firmou-se nos livros, terminou um curso de odontologia em Recife e vivia de boticão em punho no Crato há mais de vinte anos. Seus caminhos cruzavam-se,  esporadicamente, na rua, numa farmácia, no comércio. Não mais que isso.
                                               Pois bem, neste 2012 --- e pululam explicações catastróficas sobre esta coincidência ---  as aparentes paralelas, descobriram-se  semi-retas e voltaram às intersecções. Meio do ano, no último final de semana da Expô/Crato, os dois --- cada um por  razões diversas --- tiveram que viajar. Valdenor fora convocado para uma reunião de avaliação de desempenho da sua Concessionária em São Paulo e Orlando  partia para  um Congresso científico, no Rio. Viajavam ambos meio a contragosto, tendo que abandonar os dias mais virulentos das festividades de meio do ano. Mas que jeito ? Manda quem pode e obedece quem tem juízo !  E não era , simplesmente, o desassossego de abandonar a cidade em tempos tão festivos. Orlando  era muito supersticioso e ficou cabreiro quando um tio seu, o velho Júlio Maia, lhe alertou, no dia anterior, que tinha tido um sonho muito ruim: vira no delírio onírico, com aqueles olhos que a terra haveria de lanchar,  uma avalanche de troncos de madeira descendo ladeira abaixo e caindo em cima do sobrinho. E Valdenor, embora não tenha contado a ninguém, andava também com uma pulga detrás da orelha. Ele tinha uma vaca que chamava carinhosamente de “Maiada” e que dava uns quinze litros de leite todo dia, pois depois que marcou a viagem, ela  botou para secar os peitos e , de repente, não caiu mais um pingo. O vaqueiro do sítio o alertara que aquilo não era sinal de  bom augúrio.
                                               Por peripécias do acaso, iriam se encontrar no aeroporto. Estavam meio emburrados com a necessidade de viajar em dias tão pouco propícios. Tinham chegado ali com a ajuda das esposas que se despediram de cada um deles , após o check-in. Toparam um com o outro já na sala de embarque, enquanto reviviam os bons tempos, perguntavam por colegas da época e pelo destino das meninas mais charmosas da turma. Tinham comprado, embora não soubessem, passagens no mesmo avião. A coincidência chicotou ainda mais a curiosidade sobre os bons e  antigos tempos. E conversa puxa conversa, fofoca exuma fofoca, nem perceberam que a aeronave não chegara no tempo previsto e no quadro já não havia previsão para o embarque. Passadas uns sessenta minutos da hora prevista, finalmente,   o pessoal de terra avisou que o vôo 1899 para São Paulo, com escala no Rio, por problemas técnicos estava suspenso. Sabiam que só haveria agora vôo no dia seguinte e ficaram chateados com o contratempo.
                                                É neste exato momento que as versões divergem. Quem teria dado a idéia cabalística ? Reza a crença que Valdenor teria bolado o plano. Eu, como simples relator dessa história é que não vou enfiar minha colher neste consumê . O certo é que , independente de quem foi o Thomas Edison, os dois concordaram. Oras, não havia outros passageiros conhecidos. Deixariam as malas no Malex do Aeroporto, comprariam um chapéu para disfarçar e partiriam direto dali para a Expô/Crato. Na hora prevista de chegada aos seus destinos originais , cada um ligaria para a esposa informando que a viagem foi ótima , que estava tudo bem e que iriam descansar um pouco para  o início dos trabalhos mais tarde. Virariam a noite, na maior farra desse mundo e , no outro dia cedinho, pegariam um taxi, se despediriam das catraias que tinham arranjado e partiriam , finalmente, para Rio e São Paulo para os eventos previstos, com a desculpa mais que justificável de falha da Companhia Aérea.
                                   Seguiram à risca o plano. Sentiram-se voltando no tempo e gazeando a aula de Educação Física para ir ao Cabaré. Chegando na Expô/Crato foram direto para aquele lugar recôndito chamado inferninho. Primeiro porque ali é sempre mais reservado e privativo e, depois, porque existiam informações mais que abalizadas dizendo que lá , apesar do nome, se tratava do Nirvana. Tinha até as onze mil virgens, só descobririam que elas já tinham perdido de há muito esse atributo. Encheram a cara, dançaram o dia todo e à noite, ainda deram uma escapadinha e desceram para o show de uma Banda de Forró de nome apetitoso: “Cheira meu tabaco e desmaia”.  
                                   Ainda bêbados e grogues, de madrugadinha , já de táxi previamente contratado, partiram para o Aeroporto, com aquela cara de menino que acorda em dia de natal. Só não esperavam pela surpresa. As duras esposas estavam lá os esperando, de bote armado. Apanharam que só galinha pra largar o choco. Só depois souberam que houvera uma mudança no horário do novo vôo e a Companhia tinha ligado para suas casas avisando de mais esse contratempo. As jararacas pegaram o fio da meada, descobriram rapidamente a tramóia e partiram para lá, prontas para flagrar os recém-ressuscitados boêmios. O julgamento foi sumário, a peia comeu no centro, o papelão revelou-se publicamente e a pena executada fora em praça pública.
                                   Alguns dias depois, ainda de caras inchadas e reclusos, em silêncio obsequioso, Valdenor ligou clandestinamente para Orlando. Na defesa , um tinha colocado a culpa no outro e, certamente, quando o tempo os absolvesse , ficaria um ranço danado de cada uma das esposas com o amigo do marido. Mas que jeito ?   Orlando, o mais supersticioso, fatalisticamente disse ao colega que deviam ter prestado mais atenção aos sinais premonitórios da catástrofe. Tudo estava escrito!
                                   --- Veja só, Valdenor ! Tio  Júlio MAIA disse que eu não viajasse;  sua vaca MAIAda secou os peitos e a o diabo da banda da Exposição, você lembra?  “Cheira o meu tabaco e desMAIA” . Pois todos esses Maias tinham razão ! A calendário dos Maias estava certo,  nós é que nos abestalhamos, o Mundo tinha mesmo que se acabar neste 2012 !

13/12/12

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Coalho



Toda vila tem seus muitos filhos  naturais e um sem número de outros adotivos. Aqueles  não tiveram escolha, emitiram seus primeiros vagidos no lugar, por mero acaso ou por ditames obscuros da sorte e do destino. Os adotivos, por outro lado, usaram sua sensibilidade e sua empatia na escolha do lugar geográfico onde iriam depositar sua história. Difícil compreender que estranhas forças os impeliram para lugares distantes e muitas vezes inóspitos, sem nos ampararmos nas amarras do fatalismo ou da transcendência. O Crato viveu, durante todo seu percurso, prenhe de uma infinidade de filhos adotivos que aqui chegaram, por obra de estranhas forças e ajudaram a escrever e reescrever muitas linhas da história da Vila de Frei Carlos: Bárbara de Alencar, Martins Filho, os coronéis Antonio Luiz, Álvaro Bomílcar, Jéfferson de Albuquerque, Dr. Antonio Gesteira,  Padre David Moreira, José do Vale Feitosa, Manuel Vieira, Soriano de Albuquerque, João Brígido, isto apenas para citar alguns.                                
                                   Pois bem, hoje, falaremos de um desses importantes filhos adotivos do Crato e que fundiu sua alma ao doce espírito da nossa Vila. Chamava-se Teófilo Artur de Siqueira Cavalcante e nasceu em Palmares , no Pernambuco tão ligado umbilicalmente ao Cariri. Nascido em 1869, veio para o Crato ainda guri, com seu pai, juiz de direito e aqui permaneceu até sua partida definitiva em 1941.  Nas primeiras décadas do Século XX, Teófilo fundou a Pharmácia Siqueira, estabelecida ali na Rua do Fogo ( hoje Senador Pompeu), colada ao nosso primeiro Clube :  “ O Cariri”. O prédio foi demolido ,recentemente, como tem acontecido com todo o Centro Histórico da nossa cidade , numa deliberada e programada incineração do nosso passado glorioso. A Pharmácia Siqueira funcionava como uma espécie de Pronto Socorro da cidade, junto com outros estabelecimentos farmacêuticos da Vila : A Pharmácia Telles, a do Coronel Secundo Chaves, a Botica do Coronel Garrido  e a Central de José Alves de Figueiredo ( o Zuza  da Botica). Mais que isso, elas juntavam , em rodinhas de fim de tarde, toda a intelectualidade da vila, a comentar as últimas notícias, as derradeiras fofocas  e os debates acalorados das áreas:  literária, econômica  e política.
                                   Teófilo era esguio, usava óculos de lentes grossas e tinha um nariz proeminente que lhe imprimia feições parecidas com  a do poeta Manuel Bandeira. Nosso boticário era bem humorado e irreverente. Língua afiadíssima, comentava todas perversões da sociedade provinciana com uma fina argúcia , imersa num comburente molho de malagueta. As suas peripécias faziam parte da nossa doce mitologia cotidiana, cresci ouvindo meu pai , na Livraria Católica, narrar as suas histórias, alegremente, como se viessem de João Grilo,  Cancão de Fogo  ou Pedro Malasartes. Percebendo que se vão esmaecendo estas lembranças nas novas gerações, resolvi registrá-las no papel que tem uma perenidade bem maior que a saliva. Pois aí vão, vendo-as pelo mesmo preço que as comprei !
                                   Aí pelos anos 20, chegou ao Crato um oftalmologista e se estabeleceu na Rua Grande, numa sala agregada à Farmácia Telles , onde depois funcionou o consultório do Dr. Maurício Telles. A novidade espalhou-se rapidamente na região. Se médico naquele tempo era coisa rara, especialista, então, tornava-se artigo para ser tombado pelo IBAMA. A notícia chegou aos ouvidos de Teófilo que não engoliu bem a história. Imaginou, logo, que estabelecido nas  beiradas da farmácia rival, o especialista só iria prescrever remédios da farmácia mais próxima. Começou, imediatamente, a alfinetar o novo esculápio , sem ao menos o conhecer. Um dia, o oculista entrou na Pharmácia Siqueira . Desejava cumprimentar o boticário e apresentar-se , pensando na possibilidade de alimentar uma política de boa vizinhança e, claro, vislumbrando possíveis encaminhamentos de pacientes ao seu consultório. Siqueirinha, o filho do boticário e balconista,  conhecia já o novo profissional e percebendo a aproximação ainda à distância, resolveu pregar uma peça no pai. Abriu o assunto que sabia bastante melindroso:
                                   --- Pai, sabia que chegou um novo oculista na cidade?
                                   Teófilo, meio exasperado, respondeu, enquanto o doutor já entrava na botica:
                                   --- Soube meu filho ! Pois vá lá em Gonzaga de Melo—que era genro Siqueira– e diga para mandar aqui para farmácia uma carrada de vara !
                                   Siqueirinha, sem compreender, já com o médico junto do balcão, pergunta, ciente da bomba que vem de lá:
                                   --- Carrada de vara, papai ? Aqui pra farmácia ? Não entendi !
                                   Teófilo, então, explode a dinamite:
                                   ---- Vara, sim, menino ! Pelo qu´eu soube desse oculista novo, o que vai dar dinheiro agora, em farmácia, é vara de puxar cego !
                                   Siqueirinha, por sua vez, aproveita para completar a pegadinha . Virando-se para o oculista, diz:
                                   --- Papai, eu quero lhe apresentar este rapaz! Ele é o novo oculista da cidade.
                                   Ao contrário do que esperava o filho, o boticário não perdeu a fleugma. Olho-o da cabeça aos pés, sem demonstrar surpresa e saiu-se com essa:
                                   --- Oxente, tá besta menino ! Eu conheço o doutor já de muito tempo, já tava até brincando com ele !
                                   A década de vinte trouxe ao Crato uma das maiores pianistas brasileiras. Conhecida familiarmente por “Chaguinha”, tinha uma grande ligação com o Crato.  Consta que a artista tivera um affair ou um rolo com o nosso Pedro Maia, músico, fotógrafo e motorista, por fim, quando suas folhas começaram a tombar no outono da existência. Pois, bem,  a cidade engalanou-se  para  o show. Armou-se um grande palco na Praça da Sé, onde se instalou um piano de cauda e uma grande mesa que comandaria a importante solenidade. Teófilo fora escolhido como orador do evento. Possivelmente por indicação de Dr. Elysio Figueiredo(1892-1975) de quem era grande amigo. Dr. Elysio, médico,  talvez tenha sido o orador mais brilhante e inspirado que o Cariri  já teve  . Dono de uma memória prodigiosa, de porte atlético e com gestos teatrais tinha o poder de hipnotizar qualquer platéia com sua voz possante e sua erudição. Ele sabia perfeitamente que Teófilo possuía um discurso básico e único adaptável a qualquer ocasião e já o tinha decorado de cabo a rabo. Antes do início da solenidade, procurou o Dr. Irineu Pinheiro(1881-1954), um dos nossos maiores historiadores , o autor de “Éfemerides do Cariri “ e o informou que sabia qual seria a fala de Teófilo naquela noite. Sapecou-lhe o discurso que tinha decorado com sua memória fotográfica. Montada a mesa, antes do concerto, com todas as autoridades locais, inclusive Dr. Elysio e Dr. Irineu, a palavra foi cedida ao orador da noite : Teófilo Siqueira. Encetado o discurso, Dr. Irineu começou a não se agüentar e a rir descontroladamente: saía o pronunciamento igualzinho ao que Dr. Elysio havia há pouco recitado. Nosso historiador necessitou sair de mansinho , sob qualquer pretexto, sem conseguir sustentar a crise de riso. Terminada a solenidade e o concerto inspirado de Chaguinha, Teófilo comentou o descontrole do escritor:
                                   --- Tu viu, Elysio a besteira de Irineu? Aquilo é burro, tapado, bocó que só uma porta velha . Também num é pra menos, né ? Ele nasceu no “bê-erre-obró” !
                                   Dr. Elysio sabia que Teófilo , como um ascendente do personagem  “Coxinha”, tinha sempre duas avaliações críticas. Uma na presença do avaliado e outro na sua ausência. Finalizado o concerto, nosso boticário se dirigiu para a pianista e dissolveu-se em elogios:
                                   --- D. Chaguinha, eu nunca vi coisa tão linda. A senhora toca como um anjo !  Por um momento eu fechei os olhos e  tive o maior sobressalto, pensei que tinha era morrido e já tinha chegado  no céu ! Isso que a senhora carrega nas mãos não são dedos : são varinhas de condão !
                                   Terminada  a solenidade, voltando para casa, Dr. Elysio pediu, por fim a segunda avaliação da artista. Teófilo olhou para um lado e para o outro, certificando-se que não havia testemunhas outras e soltou o verbo:
                                   ---- Elysio, como é que a pessoa não tem vergonha e vem para o Crato dizendo que sabe tocar piano ? A noite toda tengo-tendo-tengo ! Parecia um ferreiro cantando numa gaiola! Uma nota não batia com a outra, rapaz!  Era ver uma casa na chuva, cheia de goteira, as panelas espalhadas pelo chão e os pingos caindo aqui e ali: tém-tém-tém.  

 O cratense Vicente Leite ( 1900-1941) foi um artista plástico de fama internacional, considerado por alguns o maior paisagista brasileiro. Aluno da Academia Brasileira de Belas Artes, Vicente foi colega de Portinari e Orlando Teruz.  Muito premiado, Vicente Leite em 1935 recebeu como prêmio, uma viagem pelo Brasil , seu maior sonho. Aproveitou a oportunidade para expor seus trabalhos na sua terra natal , vindo em companhia ilustre do escritor cearense, membro da Academia Brasileira de Letras, Gustavo Barroso (1888-1959).  Sua Exposição foi aberta em Crato com muito estardalhaço e, na inauguração, estiveram presentes, na comitiva principal que acompanhava o pintor e Gustavo Barroso, Dr. Elysio e Teófilo. Antes Dr. Elysio já havia alertado o artista plástico e nosso importante literato sobre a variabilidade das avaliações estéticas do boticário, dependendo, claro, da presença ou ausência do avaliado. Cientes todos destas características, combinaram todos para apreciar a primeira opinião e , depois, se ausentarem Vicente e Gustavo, escondendo-se por perto, para , assim, terem , por fim, aquela outra visão menos pessoal de crítica estética. À medida que a comitiva ia, pouco a pouco, degustando as lindas paisagens do pintor cratense, Teófilo proporcionalmente parecia se extasiar com a beleza das telas e comentava :
                                   --- Vicente, isso é uma coisa divina ! Sua arte, meu amigo, é de um realismo difícil de se conceber. Eu acho que você deve , embaixo de cada uma dessas paisagens, botar uma advertência informando que se trata de um quadro. Corre o risco, se não o fizer, de um menino querer trepar num pé de mangueira desse pensando que é de verdade. Eu mesmo, há pouco,  cheguei a pensar em ir buscar minha rede prá armar debaixo dessa braúna à beira do rio.
                                   Os elogios se sucediam até chegar o momento em que  o previamente combinado se realizou. Vicente Leite e Gustavo deram uma desculpa , pediram licença, dizendo que precisariam se ausentar um pouco a fim de resolver algumas pendências da Vernisage.  Sem que ninguém percebesse, esconderam-se por trás de um empanada próxima que fazia a divisória de partes da exposição. Dr. Elysio, então, mandou o mote :
                                   --- Teófilo, agora que os homens já saíram, diga prá gente, rapaz, o que é que você tá achando mesmo dos quadros de Vicente Leite ?
                                   Teófilo cubou o ambiente certificando-se da ausência dos autores e não tardou em mandar a glosa:
                                   --- Compadre Elysio, mas como é que pode ? A pessoa trazer de tão longe uma porcaria dessa dizendo que é arte ? O sobrenome dele já diz tudo : Leite ! E pode ter certeza, compadre, botaram água nesse leite. Eu não sei não, viu ? Prá fazer uma coisa labrocheira como essa eu acho que só tem um jeito : ele envia o pincel no cu e fica rodando prá lá e prá cá, como um pião doido.Nãããããooooooo!
                                   Por trás da empanada se ouviram gritos abafados e mal contidos. Parece que o leite de Vicente tinha acabado de talhar.  

07/12/12