sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Metais Pesados


Juju Bemtevi posou de delegado em Matozinho, por muitos e muitos anos, quando do reinado dos Cangatis. Lá tinha sido colocado como elemento da mais inteira confiança pelo  grande chefe político local: o Coronel Pedro Cangati. Juju nascera praticamente dentro da casa do Coronel e sempre fora um dos mais  emperdenidos baba-ovos do chefe. Pedro mandava e desmandava na política local há quase quarenta anos e tinha a habilidade de encaixar, nos devidos escalões da administração, pessoas da sua mais completa obediência.  Juju bramia com sua voz portentosa, ensaiava autonomia  e brabeza, mas sempre fora um mero pau mandado do Coronel. Todo final de semana, junto com o destacamento pequeno de dois soldados, prendia alguns acusados de crimes menores: embriaguez e desordem, ladrões de galinha, valentões. Tinha uma predileção toda especial – sabe-se lá por quê— pelos adversários históricos dos Cangatis.  Na segunda-feira – já se tornara uma obrigação – Pedro adentrava a delegacia e visitava um por um os detentos. Fazia cara de estranheza e revolta, dava o maior esporro no delegado :
                                               --- Tá ficando doido, Juju? Seu irresponsável ! Como é que prende uma pessoa de bem como essa!  Você é que devia estar na cadeia, miserável!  Solte imediatamente este cidadão de bem, jóviu?
                                               Os presos , libertos, saiam com uma gratidão eterna ao prefeito. Nem percebiam que ali estavam dois ótimos atores em cena : Juju e o Coronel. O Cangati sabia, com seu faro político aguçado, que a liberdade é o maior bem que alguém pode ofertar a outrem. Nas eleições subseqüentes, aqueles eram votos garantidíssimos.
                                               Juju, por outro lado, carregava consigo , ainda, uma enorme parcialidade nos inquéritos policiais. Amigos dos Cangatis não podiam ter falhas nem cometer ilícitos. Inimigos políticos, nem precisavam aparentar defeitos: Juju se encarregava de encontrá-los!  Como ? Há artimanhas dignas de Pedro Malasartes, no nosso Bemtevi.
                                               Certa feita,  Juju soube de uma discussão em uma bodega da vizinhança. Nonato, o proprietário, se desentendeu com uma senhora chamada Ester e que havia comprado umas broas há uns dois meses e nunca mais viera saldar a pendura. Os dois bateram-se na feira e estabeleceu-se uma discussão danada, com impropérios cuspidos lado a lado, cutucados por uma turba, que aos gritos, como torcida de futebol, ia dando corda de um lado e de outro. Juju ouviu, da delegacia , o arranca-rabo que já se espalhara até a porta do estabelecimento.  Partiu célere para lá com seu exército de Brancaleone.  Interessava-se, principalmente, por conta dos dois serem adversários ferrenhos dos Cangatis. Levou-os presos, sem qualquer possibilidade de defesa. Em lá chegando, o escrivão começou a lavrar a ocorrência. Como enquadrá-los no Código Civil ou Penal? Um bate boca de meio de rua ! Pediu a ajuda do delegado, após tomar o depoimento dos dois réus. Não seria mais sensato liberá-los? Aquilo se tratava de um mero problema pessoal, uma dívida de bodega! Juju fincou pé e disse que não : haviam cometido um crime hediondo !
                                               --- Crime hediondo, seu delegado? Como? Pois então me diga, aí, como indicio Ester e Nonato, em que crime, meu senhor ?
                                               --- Não tá vendo, não , seu abestado? Tá na cara ! Os nomes dos dois já denunciam tudo : Ester e Nonato. Artigo 171 :  ESTELIONATO !
                                               De uma outra feita, Giba das Melancias , um feirante de Bertioga, foi denunciado por ter, aparentemente, roubado uma pata do terreiro de  Felinto Cassundé. O velho dizia que havia pego Giba com a mão na massa. Ele amarrara uns milhos num cordão e oferecera à  pata de estimação de Cassundé. Quando a ave engoliu os milhos, ele puxou o cordão, pegou a pata e caiu no gramear. Havia sido denunciado pelo quá-quá-quá-quá do bicho e Felinto jurava de pé  junto que era de Giba o vulto que viu se escafedendo noite adentro. Havia agravantes e atenuantes na questão. Felinto era amicíssimo dos Cangatis e nosso feirante  tinha língua de trapo  e vivia eternamente pinicando o oratório do Coronel Pedro. O inquérito policial, aberto, dificilmente poderia beneficiar Giba. Não deu outra! Apareceram muitas testemunhas assegurando a veracidade do roubo  perpetrado por “Das Melancias” e Juju mandou, imediatamente, indiciá-lo.
                                               O escrivão, confuso, pediu que o delegado especificasse o artigo. Aquilo , mesmo se se tratasse de um furto, perfazia de uma questão menor, passível de libertação imediata do réu:
                                               --Um roubo de uma pata? Ora me poupe , seu Delegado !                   
                                               Juju, de seu lado, cuspiu fogo:               
                                               --- Prisão que nada !  O réu é inimputável, seu escrivão! Quero que seja encaminhado imediatamente ao manicômio judiciário da capital !
                                               O escrivão não conseguia entender uma loucura daquelas:
                                               ---  O roubo de uma pata, seu delegado? Manicômio judiciário ? O senhor tá doido, tá ?
                                               --- Manicômio , sim, seu escrivão! Eu tenho é trinta anos nas barras dos tribunais. Roubou uma pata ? Pois é! Esse Giba só pode ser um PsicoPATA ! Recolhe !
                                               Semana passada, Bemtevi deixou claro que tinha dois pesos e duas medidas. O Capataz do Coronel Pedro Cangati teve uma desavença com um Caxeiro Viajante que , segundo a versão do capataz, andou se enxerindo para sua esposa . O Capataz seguiu os primeiros sussurros da vila e, não quis saber. Sapecou uns cinco tiros , a queima roupa, no nosso viajante que, naquele mesmo momento, empreendeu uma viagem mais longa e com passagem só de ida.
                                               Fez-se um furdunço danado em Matozinho. Bemtevi , de repente, viu uma enorme batata quente cair-lhe às mãos. O assassino se escafedeu. A opinião pública horrorizada pedia justiça. O Coronel, por sua vez, pressionava o delegado para minimizar o acontecido no inquérito. Não queria ver, de nenhuma maneira, seu capataz condenado. E cabeça de juiz e bunda de menino  é como cabeça de mulher, dizia ele: ninguém sabe o que vai sair lá de dentro. À noite, com a solidão como cúmplice, Juju convocou o escrivão e ordenou que colocasse como Causa Mortis :  Intoxicação! O escrivão não acreditou no que estava ouvindo:
                                               --- Tá ficando louco, delegado? Intoxicação ? Com essa ruma de buracos de bala pelo corpo ? intoxicação de quê ?
                                               Juju, de lá, mostrou seus conhecimentos inequívocos de Medicina Legal :
                                               --- Intoxicação Aguda por Chumbo !


24/08/12

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Gambiarra


Eliseu  montara uma pequena bodega em Matozinho. Estabelecimentozinho de periferia, com duas portas que davam para rua e  eram fechadas com uma centena de cadeados, toda noite, por um comerciante temeroso de um rapa dos malacas cada dia mais frequentes e ousados naquelas brenhas. Com o passar dos anos e o crescimento da Vila, a bodega tornou-se cada vez mais central e nosso empreendedor  resolveu ampliá-la, comprando uma casa vizinha e estendendo um puxado lateral. Após a reforma de pobre, que durou uns três anos, Eliseu  resolveu , impavidamente, colocar um nome mais apropriado e menos brega. Convocou, então, “Pedro Brocha”, o mais importante puxador de letras da Vila. Uns dois dias depois, avistavam-se,  de longe,  as letras garrafais abertas por Pedro, no frontispício da antiga Bodega :  “Mercadim  Temo-Meno” e logo embaixo o slogan : “Se tá liso , fale com Eliseu “.
                                   Nosso comerciante compreendia, perfeitamente, os meandros dos pequenos negócios de interior. Precisava vender fiado, pois a clientela vive eternamente na dependura, esperando o salário futuro,  o Bolsa Família ou o décimo terceiro. Para tanto risco, fazia-se necessário vender com uma grande margem de lucro para cobrir os inevitáveis prejuízos dos velhacos que estavam , sempre, não na camada mais pobre da população, mas entre os mais remediados. Por outro lado, fazia-se mister fracionar as vendas a granel, ampliando as possibilidades de compra de todos : uma colher de manteiga, uma xícara de açúcar, dois dedos de óleo comestível, três gomes de tangerina, uma  talagada de café e por aí se estendiam as variadas unidades de  compra.  Houve casos de Eliseu vender a clara de  ovo para um freguês e a gema a outro.
                                   Com os ajustes necessários às peculiaridades de Matozinho, o negócio prosperou. Eliseu comprou alguns imóveis na nova periferia da cidade e até um sitiozinho próximo ao Açude do Sabugo, onde cultivava algumas fruteiras, quando conseguia se desvencilhar do Mercadinho que não lhe dava trégua , nem nos fins de semana ,nem nos feriados. Mesmo contanto com a ajuda de D. Eudóxia, a esposa, que se dividia entre os trabalhos domésticos e os empreendimentos comerciais do marido.
                                   O casamento, de mais de trinta anos, já era uma instituição mais burocrática que afetiva. O casal aprendera a se gostar, mas já não os unia aquele fulgor juvenil que incendiava as fronhas dos travesseiros e sapecava as beiradas das cuecas e calcinhas. Talvez, por isso mesmo, Eliseu ante uma Eudóxia de fogo arrefecido pela ducha da menopausa, tenha arranjado uma gambiarra,  se enrabichado de uma moreninha fogosa de uns vinte e poucos anos. Chamava-se Zuleika, para os íntimos, como Eliseu, atendia por Zuzu. Pernas parecendo troncos de aroeira, peitos duros, pontudos , ameaçadoramente, em riste,  e uma bunda enorme, de almofada; era impossível não se endoidar os cabeções  diante daquela Deusa Afro.
                                    Eliseu cedeu uma das casas para ela, fazendo um contrato fictício para não despertar a desconfiança da esposa e, à noite, passou seguidamente a sair e chegar tarde, sob o pretexto de que precisava cuidar do sítio. Como sói acontecer nesses casos, a repetição sub-reptícia dos meus hábitos termina por denunciar o crime. Cidadezinha pequena : povo de língua grande! Não tardou chegar aos ouvidos de Eudóxia a história da teúda e manteúda do marido. As portas do inferno, então, se abriram para Eliseu. A mulher, como um cão farejador, não dava trégua. Aos poucos, foi cercando o Lourenço e com ajuda de inúmeras amigas, montou um extenso dossiê sobre o caso e, montada neste calhamaço, dia após dia, numa tortura chinesa, infernizava a vida já tão atribulada do bodegueiro. Eliseu negava , negava, mesmo diante das inúmeras evidências. Inexistiam, no entanto, provas materiais e, de posse desta jurisprudência, ele mantinha uma cara de injustiçado, de perseguido, de torturado pelas idéias persecutórias da patroa. Esta era a única defesa que lhe restava. Começou a ter cuidados extras e os encontros com Zuzu, não mais se faziam na casa dela ( por medo de flagra) , mas no sítio, no mato, em propriedades afastadas de alguns amigos e numa outra residência que terminou adquirindo, às escondidas, no caminho de Bertioga e que usava, periodicamente, como um ninho de amor.
                                   Semana passada, no entanto, a porca torceu o rabo. Eudóxia permanecia no Mercadinho durante todo o dia, só saía na hora do almoço, entre às 11 e 13 horas. Ciente deste hábito da esposa, Zuzu tinha sido orientada  a , mensalmente, ir justamente neste horário pegar a feira dela.  Alguém deve ter soprado no ouvido de Eudóxia, o certo é que, no último sábado, no horário previsto, Zuzu estava com o carrinho cheio, no caixa de Eliseu, trocando os últimos combinemos para as noites seguintes, quando, de repente, a esposa entrou feito bala,  Mercantil adentro. Fitou o casal, furiosa e, mãos na cintura, em feitio de açucareiro,  aguardou o desfecho. Ia ser de graça? Estava, então, constatada, definitivamente, a tramóia! Certamente ela não tinha dinheiro pra pagar a feira, né? – pensou Eudóxia com suas metralhadoras engatilhadas!
                        Eliseu, no entanto, permaneceu tranqüilo, como se nada tivesse acontecido e Zuzu ainda pediu licença , perguntando se era possível ainda acrescentar mais uma lata de Leite Ninho. Claro que sim, minha senhora! -- retrucou o comerciante. Quando a mocinha retornou, ainda sob  as baterias carregadas de Eudóxia que a fuzilava, olhando de cima abaixo, como se perguntasse( com a pior certeza desse mundo) : “o que é que ela tem que eu não tenho?” , um Eliseu calmo e tranquilo, dirigiu-se ao Caixa, tirou de lá  setenta reais, estirou as notas despretensiosamente para a deusa de ébano e agradeceu:
                        ---- Tá aqui seu troco, D. Zuleika!Recomendações ao seu esposo !  Obrigado pela freguesia e volte sempre, viu? 

16/08/12

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Tirrintas & Aribés


Padre Medeiros assumiu a paróquia de  Serrinha dos Nicodemos, quando do histórico desmembramento da de Matozinho. Consta que o então pároco  matozense,  já não conseguia dar conta de tantas ovelhas espalhadas por distritos e vilas circunvizinhas. O sacerdote alemão Norsinger , conhecido por todos como “Nó Cego”, já carregava nos ombros e pernas o fardo de mais de setenta décadas. Contam que, por conta da desassistência, o rebanho viu-se na necessidade de procurar  Igrejas Evangélicas  que começaram pouco a pouco a se disseminar na região.  A assimilação do novo credo não era fácil, pois desbancar Padre Cícero , Frei Damião e Nossa Senhora dos seu altares, era heresia para ser resolvida apenas por uma nova Inquisição ou uma outra Cruzada. Os pastores precisaram, pois, sabiamente ou sabidamente,  minorar um pouco o discurso de uma divindade centralizada, sem advogados e secretários, para poder conquistar um rebanho disperso. Mas pouco a pouco , com o passar dos cultos, precisaram introduzir os princípios básicos da sua teologia, inclusive uma outra medida muito impopular : o dízimo.
                                               A chegada de Pe Medeiros em Serrinha, assim, trouxe uma incontida alegria à população. Embora idoso, ou por isso mesmo, o pároco transpirava   virtude. Como todo santo mortal, no entanto, escorregava em um ou outro pecado capital, que ninguém é de ferro. A luxúria já não trouxera à Serrinha. Avareza, soberba, ira e vaidade, se um dia cultivara, tinham ficado pelo caminho entre Serrinha e a Capital . Restavam apenas  a preguiça , um pouco por conta das décadas que se foram sucedendo e, principalmente, aquele que mais contribuiria para ( se não amainassem as Leis de São Tomaz de Aquino) levá-lo , um dia , às labaredas do Inferno : A Gula.
                                               Medeiros , pesadão, com uma barriga digna de um Rei Momo, comia como se previsse uma nova seca de 77. Invariavelmente, mandava cozinhar todo dia: um quilo de arroz, um outro de feijão e uns dois de carne e depositando a ruma de comida num aribé, comia como se estivesse previsto para logo mais o apocalipse dos Maias. Rosário, sua empregada,  trazida na bagagem da capital, fazia ainda acompanhar um vinhozinho para desentalar o gogó do nosso padre. As línguas maldosas de Serrinha diziam que o sacerdote durante o dia passava de comida e vinho e, de noite, religiosamente, debulhava Rosário.  A fama de esgalamido era tamanha que se criou até uma expressão típica de Serrinha e redondezas. Neguinho terminava uma lauta refeição, esfregava a pança, arrotava e já , automaticamente , soltava a catilinária:
                                               --- Menino, comi que só Padre Medeiros !
                                               O padre danava-se com esta história:
                                               --“Comem que só um cavalo batizado e vem com esta conversa de Padre Medeiros! Se eu pegar o engraçadinho dizendo uma marmota dessas, eu excomungo !”
                                               E eram muitas as potocas envolvendo nosso Medeiros e suas peripécias à mesa. Segundo o povaréu, numa  das viagens  à capital, pernoitou em uma vilazinha : “ Marmeleiro de Dentro”. Lá a única pousada existente era o “Café de Dona Loló”, uma senhora simpática e extremamente religiosa e que ficou pois felicíssima com o visitante ilustre. No jantar, D. Loló ficou impressionada com a voracidade do Padre: enrabou uma buchada, uma dobradinha, uns pedaços generosos de lingüiça, umas costelas de leitão e um porco na rola, junto com uma garrafa de vinho São Francisco, demonstrando, por fim,  a todos sua devoção. Terminado o lautíssimo jantar, atravessou o corpão numa rede, desmaiou de sono e começou a roncar desesperadamente, igualzinho ao barrão que acabara de degustar. Dir-se-ia um trator subindo uma ladeira, ou um motosserra derrubando um jequitibá. D. Loló,  diante daquele barulho ensurdecedor, lembrando ainda da montanha de comida pesada engolida pelo hóspede, começou a se preocupar:
                                   ---“Meu Deus, valei-me,  o padre tá passando mal, o Padre tá morrendo”.
                                   Resolveu, então, tomar uma atitude salvadora. Aproximou-se da rede, balançou-a prá lá e prá cá, com força, até despertar o religioso. Apreensiva perguntou-lhe:
                                   --- Seu padre, o Senhor tá bem? Tá passando mal? Quer tomar um chá?
                                   Medeiros pareceu recuperar-se do pesadelo ante a auspiciosa notícia,  aceitou o chá, mas impôs condições:
                                   --- Quero, D. Loló, mas só se for com umas bolachas “cheme craque”!
                                   De outra feita, num casamento que realizou , foi à festa e comeu como só Padre Medeiros ou um elefante seriam capazes. Terminado o almoço,  ficou entalado e começou a suar em bicas como se estivesse tirando espírito em Terreiro. Os convivas acorreram , interrogando-lhe se não preferiria botar o dedo na goela para vomitar e, assim, se aliviar. O Padre justificou a negativa:
                                   --- Meu filho, se coubesse ainda um dedo no gogó, eu comia era uma banana !
                                   Semana passada , Medeiros numa visita de desobriga, chegou numa casa humilde da zona rural.  A dona, uma senhora humílima, feliz com a ilustre e rara presença, convidou-a para almoçar. Nem imaginava a bronca em que se metia, com o risco pouco calculado de deixar toda a família a ver navios ou estrelinhas.
                                   --- É um mucunzá, seu padre, o Senhor aceita um pratinho?
                                   --- Aceito, sim, minha filha, nem gosto muito de comer, estou fazendo dieta, mas veja lá uma tirrintazinha, dessas mais fundas, viu?
                                   Rápido , Medeiros sorveu a primeira tigela e a pobre Senhora, a seu pedido, começou a encoivarar pratos e mais pratos. Na altura do sétimo ou oitavo, a dona da casa, já observando o fundo do panelão, perguntou:
                                   --- Seu padre, o senhor gosta de Muncunzá, como um desvalido, né?
                                   Medeiros arrematou:
                                   --- Gosto não, minha senhora ! Eu odeio muncunzá, mas   coisa ruim a gente deve acabar logo, né? Vai ver a Senhora oferece a uma pessoa estranha, ela é capaz de arreparar!

09/08/12

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Antenando com Atenas




Depois de assistir aos deprimentes acontecimentos pela TV, o prefeito Sinderval Bandeira --  mais conhecido como “Bandalheira”-- revoltou-se. Aquilo era lá papel que se fizesse!? Tinham juntado um magote de malandro e mandado pruma tal de Atenas, representar o país e o papelão não podia ter sido maior. O pior é que a récua de vagabundo ainda saíra cagando goma, posando pra foto , dizendo que ia quebrar uns tal de recordes e trazer uma ruma de medalha de ouro. Até aquele momento, nada ! Quando chegaram nas estranjas, começaram a falar fino, a miar , a arranjar justificativa para tudo : “Só num nadei mais, porque a água tava muito molhada”, “eu num sabia que ganhava a prova quem corresse mais ligeiro”, “eu não ganhei porque o juiz roubou” . Estavam apanhando mais que bigorna de ferreiro. Sinderval , irritado, resolveu reunir, imediatamente,  o secretariado.
                         À tarde, suando mais que tampa de chaleira, explicou aos seus servidores municipais  os motivos da sua chateação.
                        -- Esses contadores de vantagem,  dessa tal de Atenas, mentem mais que cachorro             de preá ! Por mim, mandava buscar os sem-vergonha de volta e dava uns conselhos                    com umas lapadas de chicote de mufumbo, prá eles ganharem sustança! O pior é                   que por todo canto , todo mundo fica pensando que o povo do Brasil e de                                        Matozinho é como caldo de angu  e frouxo como eles.
                        Explicitando suas preocupações ,Bandeira  transferiu para seus assessores diretos   as  idéias de como resolver, a longo prazo, tão terrível pendência. De pronto,  criou uma secretaria de esportes e nomeou Aldemir do Peba , o mais conhecido caçador de tatu  de Matozinho ,  para o cargo. Solicitou , então, que todo o secretariado se reunisse com Aldemir e , na  semana seguinte , trouxesse um plano de como incrementar , no município, os esportes olímpicos, fabricando atletas e ajudando ao Brasil, já na próxima Olimpíada , a diminuir o queixão . Mais medalha e menos  queixo ! – finalizou Bandeira.
                        Passado o prazo estabelecido,  reuniu-se , novamente, o secretariado e Aldemir foi incisivo. Resolvera que a forma mais prática de atingir os objetivos propostos por Sinderval  seria  criar a  I   Olimpíada de Matozinho e, para tanto, haviam formado o C.O.M. – Comitê Olímpico Matozense  presidido por “Do Peba” , contendo vários membros do secretariado municipal. O Comitê , em prazo recorde,  estabelecera a data de janeiro do ano subseqüente para a abertura dos jogos. Segundo Aldemir,  houve necessidade  de adaptação de algumas modalidades esportivas, sob pena de não haver maior entusiasmo por parte dos matozenses. Depois de ampla discussão,  tinham sido escolhidos os seguintes esportes:  primeiro,  a PONTARIA: com os tiros de soca-soca em avoante,  de baladeira em Lobó,  de funda em teju e tiro de bodoque com e sem canário,em guinés. Segundo , a NATAÇÃO nas modalidades de nado de cachorrinho e nado de açude e a forma artística de cangapé em barreiro e arremesso de caco de telha n´água, além da tomada de pé no porão do Caiçara .Terceiro, JOGOS DE TERRA , com as formas de futebol de poeira, peteca, empinamento de papagaio, pião e carrapeta, pau de sebo, bila ao burias, xibiu,  futebol com bola de meia, chicote queimado, esconde-esconde e bandeira. Quarto ,a modalidade de ATLETISMO com o salto de cerca de arame farpado e de vara e a Maratona de Matozinho a Bertioga que recebeu o nome de Tatá Frecheira. Este magarefe, anos atrás, fora flagrado em adultério explícito  por um marido ciumento e , segundo consta, fez o mais rápido percurso entre as duas vilas, claro que com o incentivo do indigitado marido, sempre no seu encalço, com uma jardineira reluzente no punho.Como na Grécia antiga, morrera ao chegar, um pouco pelo esforço despreendido, mas, também , pela ajuda da jardineira lhe espetando o vazio.  Na ESGRIMA   haviam escolhido os seguintes formatos : Briga de Canivete, Quicé e Lambedeira de 12 polegadas.                   
                        A proposta do C.O.M. foi aceita sob aplausos,mesmo restando algumas dúvidas como se transformaria ,com o tempo, os atletas das diversas modalidades típicas de Matozinho em medalhistas, nos embates oficiais de Pequim .
                        Janeiro chegando,  abriram-se as inscrições para os famosos jogos de Matozinho. A procura mostrou-se  intensa. Choveram atletas de várias cidades circunvizinhas. No dia inesquecível da abertura  a cidade engalanou-se. A rua principal estava totalmente embandeirada, postes de madeira balizavam toda a avenida e neles dependuravam-se, decorativamente,  petecas,piões, corrupios, bodoques. Antes que desembocasse na praça da matriz, uma faixa cruzava toda a rua, com os dizeres que contrariavam o Barão de Coubertain : Se acheguem  à  I  Olimpíada de Matozinho ! O Importante é Vencer !  e ,logo abaixo : Espere nóis em Pequim que cum nóis não tem Pantim”.
                        Num palanque plantado na praça da matriz,  Sinderval Bandeira fez um discurso apoteótico, seguindo a fala do presidente do Comitê Olímpico de Matozinho :Aldemir do Peba. A banda cabaçal forneceu a trilha sonora imprescindível à grandeza do evento. Vários alunos do Grupo Escolar Deusamém  Candéa desfilaram enrolados numas saias caquis feitas com o pano aproveitado de uma velha empanada do Circo Merindo . O locutor anunciava-os , num microfone rouco,  como sendo uns gregos que inventaram as olimpíadas. Depois do ribombar de umas vinte dúzias de fogos, deu-se oficialmente por aberta a I Olimpíada.
                        Quinze dias depois,  encerraram-se oficialmente os primeiros jogos matozenses da era moderna. Tudo transcorreu naquela normalidade esperada para Matozinho, com alguns poucos incidentes.O medalhista de ouro da modalidade esconde-esconde ,não pôde receber a medalha : tamanha foi a sua perícia que até hoje ainda não foi encontrado. Zequinha de Bilu,  no salto sobre a cerca de arame farpado, errou o bote e caiu montado no arame. Dizem as más línguas que ,assim, sobraram bolas de gude para a prova de bila ao burias. Seu salto ficou conhecido, desde então, por “duplo twist capado” ou “De Bilu”. Ao receber a coroa  de louros ,no pódio, pela medalha de prata em arremesso de caco de telha, em que conseguiu o recorde mundial de 29 toques na água do açude,  Zezim Jurubeba  ganhou ,junto dos louros,  um mangangá que, não respeitando novo herói,  lhe sapecou uma ferroada dessas de inchar a cara e dar febre de três dias. Melhorado,  ele comentou ainda com o beiço virado:aquilo não era uma coroa de louros, era uma coroa de besouros. Teve uns vinte atletas presos por afrontarem as determinações dos juizes das provas.
                        Constatou-se, também, o primeiro caso grave de dopping nos jogos matozenses. Gereba , no dia da Maratona,  acordou com umas hemorróidas inchadas e estrepando que até pareciam uma arupemba de cambuí. Maratonista favorito,preocupado,procurou Janjão da botica que lhe prescreveu uma talagada de Vick-Vaporub no fiofó. Passada a pomada,antes da prova para que o efeito fosse mais duradouro,  Gereba sentiu uma frieza ,lá nele, como se o Zé de boga estivesse chupando drops. Com aquele motor de popa, saiu parecendo um foguete, ganhou a competição e estabeleceu o recorde mundial para a Maratona. Alguns competidores desconfiaram da velocidade de turbo, denunciaram,  e nosso maratonista terminou desclassificado pelo C. O. M.
                        Mas o mais sério mesmo aconteceu na  Esgrima: a lambedeira comeu no centro e cinco atletas acabaram com tripa gaiteira furada .  No entanto, como bem disse Aldemir do Peba , no discurso de encerramento, esta modalidade é pra cabra macho mesmo, quem num for homem , pegue seus riquififes e querequequés  e é só não se inscrever em Matozinho. Pega a roupinha de balé, come umas minguiribas , procura os outros baitolas no  Comitê Olímpico Brasileiro e vai fazer papelão em Atenas.
                        Com Matozinho no páreo, em Pequim:  num vai ter nenhum pantim!

Do Livro : "Matozinho vai à Guerra"

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A Latinha


Pois é, amigos ! Todo cuidado é pouco! Está aberta a temporada dos sorrisos epidêmicos, dos abraços compulsivos, da simpatia desvairada, da solidariedade a todo preço! É assim, sempre, o período eleitoral. Imaginem quatro candidatos a prefeito, quatro a vice, mais de duzentos a vereador, todos eles acompanhados dos seus cabos eleitorais e mais os respectivos babões e puxa-sacos a tiracolo.  Nos próximos dois meses, é preciso se precaver. Qualquer festinha de bairro, qualquer aniversárioou casamento  é um verdadeiro perigo. De repente chegará a avalanche de sorrisos de manequim, de conversa aveludada , de tapinha nas costas. É preciso rezar para não se perder nenhum ente querido nestes próximos sessenta dias. Velório é o habitat natural de político em vésperas de eleição. Ciço de Munda, um mestre de tamanco do Cipó dos Tomaz, quase morre nestes dias. Perdeu o pai de uma congestão e, humilde, providenciou o velório conforme suas condições. O problema é que Ciço tem vinte e cinco votos, digo, irmãos. A tragédia veio daí. Passou toda a noite recebendo abraço e tapas nas costas de mais de duzentos candidatos e respectivos baba-ovos. Só de caixão de defunto recebeu mais de uma dúzia. Depois do espancamento político,  nem pode comparecer ao enterro pois teve que se internar para tratar das machucaduras.
                                   Daqui a pouco começará o Programa Eleitoral: o melhor humorístico do Rádio e da Televisão brasileiros. Os discursos serão hilários. Os programas de cada Partido parece até que foram copiados um dos outros: todos extremamente avançados e com profundo cunho socialista. E as promessas jorrarão como um tsunami. Ao que parece,  a campanha não terá muita lisura , não. Basta ver o vandalismo na Praça da Sé recém inaugurada e o incêndio no galpão de transportes da Prefeitura. Tudo levando a crer que a sabotagem tem íntima ligação com algumas facções  políticas  antagônicas neste período eleitoreiro. Por que a disputa não pode ser mais interessante? O lado B reformou uma praça ? O lado A constrói outra mais bonita num bairro. Que a guerra seja de realizações e não de incêndio e demolições ! Isso é de uma baixaria que dá engulhos. Com a visível decadência do Crato frente a outros municípios do Cariri, ficamos perdidos perguntando : como despencamos neste desfiladeiro? Os juazeirenses já brincam chamando nossa cidade de Latinha . Quando se pergunta o porquê, eles didaticamente explicam : Lá tinha Sesi, Lá tinha DETRAN, Lá tinha Concessionárias, Lá tinha SESEC.  Como a hecatombe tem muitas raízes na Política, vem a pergunta inevitável : Como escolher  em meio a tantos candidatos sem qualquer qualificação e, mais, provenientes de partidos que são meros ajuntados de interesses, sem qualquer plataforma programática confiável?  -- Deve está se perguntando o leitor. E quem diabo é que sabe, amigos? Mais fácil entender a cabeça de  mulher com TPM ou resolver a briga de israelense e palestino. Mas aqui vão algumas dicas, a quem interessar possa, para ajudar a separar o feijão dos escolhos.
                                   A primeira questão é lembrar que o voto é um ato político. Não se deve votar, pois, porque o candidato é bonitinho,  simpático,  companheiro de trabalho, é meu familiar, meu amigo pessoal. Não estamos escolhendo marido, esposa, misses, nem pariceiros. Devemos votar em uma proposta capaz de melhorar o perfil da nossa cidade, de aperfeiçoar os horizontes coletivos da nossa Vila. O candidato é apenas uma pequena peça nesse quebra-cabeças. Se você privilegia esse ou aquele político  pensando em resolver alguma pendência sua, pessoal, depois não tem o direito de reclamar quando o eleito resolver também solucionar só as dele e deixando você sozinho na Latinha.
                                   A segunda dica diz respeito ao uso do poder econômico no pleito.  Diz-se sempre que sem dinheiro não se ganha eleição. Pois bem, as absurdas verbas gastas neste período vêm de onde? A quem interessa que o candidato A ou B, vença, investindo milhões e milhões  nas Campanhas ? A derrama de grana neste período como será depois recuperada? Ou será que todos os políticos ricos são filantropos ? No final, o dinheiro será  descontado, com certeza, dos cofres públicos. Ou seja, os candidatos tentarão comprar seu voto com o dinheiro que é seu. Eles darão com uma mão e puxarão com a outra. Se você estiver na pendura, receba, mas vote segundo a sua consciência. Se isso não é ético, lembre-se: esta palavra não existe em Política brasileira. Quanto mais rica a campanha maior o risco, meu amigo.
                                   Lembre-se ainda que o cargo de vereador faz parte do Poder Legislativo. Ou seja, vereador é para fazer leis e fiscalizar as ações do Executivo. Qualquer “Zé Mané”, pois, que apareça prometendo construir estradas, melhorar a Educação, resolver os problemas da Saúde, é um mero farsante. Ele não tem esse poder. Como Tiririca ,está querendo ir para Câmara para descobrir o que é que um vereador faz.
                                   Se devemos votar em propostas, observemos bem o cardápio. Todos darão o diagnóstico dos males municipais bem direitinho : a Saúde está um caos, precisamos melhorar a educação, é necessário dar segurança à população, faz-se mister recuperar a força do Crato no cenário estadual, a Cultura está totalmente orfã. Tudo bem !  O diagnóstico está dado. Mas: quais as propostas exeqüíveis para mudar esse cenário? Como se faz o tratamento ?Candidato que não tem propostas claras  a discutir com a população, deve ser esquecido. Candidato que fugir do debate , deve ser imediatamente excluído da perspectiva do nosso voto. Se ele não quer deixar claro para seus eleitores suas intenções agora, imagine depois quando for eleito.
                                   Os partidos são tão parecidos nas suas deformidades que pode ser difícil optar por este ou aquele. Pois bem, escolhamos aquele candidato que nos parece trazer a melhor proposta para minimizar os problemas coletivos da cidade. E mais,  que tenha uma folha corrida ao menos suportável. Observemos também quem são seus acompanhantes, pois interesses mútuos os unem. Por mais ojeriza que por acaso tenhamos com a Política, não tem jeito, não tem como escapar dela. É com ela que poderemos transformar o caos em que estamos metidos ou, com nossa franca participação, ativa ou passiva, aprofundar o abismo em que fomos pouco a pouco mergulhando. Está em nossas mãos e na nossa consciência o destino da nossa querida Latinha.

02/08/12